41 anos após a revolução. A Frente Sandinista de Libertação Nacional é socialista?

Por Alternativa Anticapitalista – Nicarágua

Passaram-se 41 anos desde o triunfo da revolução popular nicaraguense em 19 de julho de 1979. A revolução nos mostrou que a força do povo da Nicarágua é tão poderosa que um ditador terrorista pode ser removido, mas que a luta deve ir além para mudar a própria base do regime e suas instituições.

A Revolução Popular de 1979*

As expectativas da revolução eram gigantescas, massivas. A Nicarágua tinha tudo a ganhar. Grandes camadas de trabalhadores, camponeses e jovens derrubaram a dinastia Somozista e, com sua luta heroica, defenderam o sonho de uma Nicarágua livre para todos. Paradoxalmente, o principal responsável pela traição desta vitória é a Frente Sandinista de Libertação Nacional – FSLN que, com suas políticas antidemocráticas, reverteu as conquistas populares para manter o sistema capitalista intacto na região. A Frente que governou nos anos 1980 e retornou em 2006 para se transformar em uma ditadura. Foi esta direção que traiu a revolução e os interesses da sociedade como um todo. Eles nos traíram.

Este é o primeiro de três artigos, no contexto desta data histórica para a Nicarágua e para o mundo. Compartilhamos algumas das razões pelas quais questionamos o falso socialismo da FSLN.

O curso de uma mutação

Um dia após o triunfo da revolução, a Junta do Governo foi instalada servindo como o Poder Executivo e Administrativo, composta por Daniel Ortega, Sergio Ramírez e Moisés Hassan; Violeta Barrios de Chamorro e Alfonso Robelo, pró-americanos e empresários.

Esta Junta compartilhou funções legislativas com um Conselho de Estado de mais de 30 membros. Era formada por 6 membros da FSLN, 6 membros do Conselho Superior da Empresa Privada (COSEP); representantes da Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua (UNAN), todos os tipos de partidos políticos e grupos sindicais; até mesmo o clero tinha um assento![1]; era uma coalizão “anti-Somozista” entre a liderança da FSLN, a empresa privada, os partidos tradicionais e a igreja; não foi um governo de trabalhadores![2]

Nós, socialistas, afirmamos que o poder deve residir no povo e na sociedade como um todo, e para fazer avançar a revolução socialista, as armas devem estar nas mãos do povo sob o controle democrático de suas organizações.

Daniel Ortega comentou em 31 de julho na Barricada: “É por isso que a FSLN, que assumiu o comando do país nos primeiros dias, está agora no processo de entregar à Junta todo o aparato administrativo e governamental e a Junta tem feito rápidos progressos nessa direção, enquanto a FSLN está tomando medidas para formar e consolidar o novo exército” [3]

Sob esta lógica, “todo o sistema jurídico que governava foi revogado e foi ordenada a substituição da GN (Guarda Nacional Somozista) por um novo Exército Nacional de caráter patriótico”.[4] O que foi ordenado foi a criação de um exército burguês regular – que defende os interesses de classe de sua direção e do Estado – e, para isso, as milícias populares foram desarmadas, especialmente os sindicatos combativos, críticos e independentes da direção da Frente. Em outras palavras, eles desarmaram o povo e com isso consolidaram mais um golpe contra a revolução.

Para que um governo seja socialista, ele deve ser um governo liderado pelas classes trabalhadoras organizadas, criado a partir de organizações populares e de base sob a mais ampla participação democrática no planejamento e na tomada de decisões das esferas política, econômica e social; isto resulta em um novo tipo de Estado diferente do atual Estado burguês: um Estado operário e de transição.**

Os motores da economia foram deixados para a burguesia.

Na esfera econômica, nós socialistas propomos que a economia seja planejada democraticamente com a participação dos trabalhadores, camponeses e o povo, para que os principais motores da economia estejam sob seu controle e que elas sejam produzidas com base nas necessidades reais da população.

O que a FSLN fez foi exatamente o contrário: desde o início, fez um pacto com a burguesia nacional e internacional e chamou de Economia Mista. Sua abordagem: produtivista. É dessa forma que “isso não significa que os grandes latifundiários estão acabados. Entre muitos outros, permanece em mãos privadas, por exemplo, o engenho de açúcar San Antonio, o maior do país. Isto porque são as massas, não o Sandinismo, que são a vanguarda da revolução agrária. Este último (Sandinismo) marcha relutantemente atrás da mobilização camponesa”[5]. O capital transnacional não foi deixado de fora do jogo. “Queremos dizer aos investidores americanos que nosso país não fechou suas portas a eles…” convidou com entusiasmo Daniel Ortega (Barricada, 7 de agosto de 1979). Assim, não se concretizou a reforma agrária para dar a terra àqueles que trabalham, vivem nela e a protegem ancestralmente..

Maza e Cuello observam que “Esta situação deixou 60% do produto interno bruto nas mãos diretas da burguesia, o que significa 81% da produção agrícola, 75% da fabricação, 30% da construção civil e 80% do comércio interno atacadista”[6]. Em outras palavras, os pobres mais pobres e os ricos – e os novos ricos -, mais ricos. Assim, o processo de revolução teve poucas mudanças revolucionárias.

Como se isso não fosse suficiente, as injustiças se estenderam ao povo do Mosquitia / Costa Caribenha Nicaragüense. A Cruzada Nacional de Alfabetização, salvaguardando o inestimável compromisso revolucionário dos jovens que participaram e suas conquistas, foi utilizada pelo governo para lançar as bases de suas políticas extrativistas, a tentativa de aniquilar suas línguas e conhecimentos (impondo o espanhol); e seus deslocamentos forçados. O avanço da fronteira agrícola, uma atividade voraz e predatória, não parou naquela época e continua até hoje.

A revolução será internacionalista ou não será

As décadas de 1970 e 1980 foram uma época de ascendência revolucionária na América Central. A derrota do somozismo nas mãos da população nicaraguense trouxe a esperança de mudança para a região e para o mundo; no entanto, a liderança da FSLN e do Partido Comunista Cubano tinham outros planos. Fidel Castro, em 26 de julho de 1979, exclamou que “às afirmações ou temores expressos por algumas pessoas de que se a Nicarágua se tornaria uma nova Cuba, os nicaraguenses deram uma resposta magnífica: não, a Nicarágua vai se tornar uma nova Nicarágua! O que é uma coisa muito diferente”. [7] Isto marcou a política internacional sandinista em relação aos povos centro-americanos em luta. A FSLN nunca se propôs a apoiar totalmente aqueles que lutaram contra suas próprias ditaduras na região; pelo contrário, virou-lhes as costas.

O #CasoJesuita é um julgamento de crimes contra a humanidade.[8] Uma operação militar, pelo batalhão Atlacatl, contra a Universidade Centro-Americana de El Salvador, em 16 de novembro de 1989, que deixou um trágico número de 8 mortos, “os mártires da UCA”. Testemunhas ligam o então presidente Alfredo Cristiani – que tomou posse quando a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) estava na ofensiva, e uma revolta popular foi prevista. Naquela época, Daniel Ortega assinou vários tratados de apoio ao desarmamento dos combatentes centro-americanos. Virou as costas para os revolucionários em El Salvador. Meses antes do ataque terrorista contra os jesuítas, em 8 de agosto, Ortega assinou o Acordo de Tola e ratificou “o incentivo aos grupos armados da região, especialmente a FMLN, que ainda persistem no uso da força, para desistirem de tais ações”. [9] E quase um mês após o crime na administração de Cristiani, em 12 de dezembro, Ortega afirmaria na Costa Rica “sua mais firme condenação das ações armadas e terroristas realizadas pelas forças irregulares na região” e, para deixar claro, também seu “apoio determinado ao Presidente de El Salvador, Don Alfredo Cristiani e seu governo”.[10]

A FSLN, a JGRN e o Governo de Reconstrução Nacional seguiram à risca a exortação de Castro e do imperialismo[11]: Parem a revolução centro-americana. Nem El Salvador nem qualquer outro país da América Central se tornaria uma nova Nicarágua. Os líderes da FSLN na Nicarágua contribuíram para deter a revolta revolucionária em toda a região; fizeram pactos com o grande capital nacional, regional e internacional, e com seus governos do momento.  Eles não avançaram com as tarefas do socialismo: nem expropriaram a burguesia, nem promoveram o planejamento democrático da economia, nem estenderam a revolução na América Central.

Nós, socialistas, reconhecemos que o capitalismo e suas instituições são um sistema internacional com alcance global e, portanto, devemos responder e organizar a revolução nesse mesmo nível. O estalinismo, por sua vez, sustentou que era possível construir o socialismo em um país, um grande erro já demonstrado com ampla experiência: o que não avança, retrocede.

Internacionalismo Militante: A Brigada Simon Bolívar

“Precisa-se de pessoas. Na Rua 17, 4-49, escritório 201, Bogotá, estão precisando de pessoas. Eles não nos oferecem empregos ou prometem enriquecer os aspirantes da noite para o dia através da venda de enciclopédias. A única coisa que eles oferecem é a possibilidade de perder suas vidas, submeter-se a riscos e desconfortos e levar uma vida cheia de perigos por um tempo incerto. Em troca, eles oferecem apenas a oportunidade de lutar pela libertação de um povo. É aqui que funciona o escritório de recrutamento de combatentes colombianos que desejam se alistar voluntariamente na luta armada contra a ditadura de Anastasio Somoza na Nicarágua”[12], assim publicou Daniel Samper Pizano em maio de 1979 em sua coluna no jornal colombiano El Tiempo.

Antes disso, a corrente trotskista liderada por Nahuel Moreno convocou à formação da Brigada Simon Bolívar (BSB) na Colômbia, semelhante às brigadas internacionalistas que surgiram durante a guerra civil espanhola, que operaram independentemente das partes em conflito.

Milhares de pessoas se inscreveram na folha do escritório 201, e mais milhares foram organizadas em todo o mundo. As campanhas financeiras para fornecer a brigada eram de todos os tipos, desde a venda de bônus Sandinista até os concertos solidários. Dez por dez chegaram à Nicarágua. Eles lutaram na Frente Sul e em Bluefields, e instalaram lá um primeiro governo logo que a cidade foi libertada. Transferidos para Manágua pela Junta, eles assumiram a tarefa de organizar sindicatos combativos com suas milícias independentes e críticos da FSLN. Formaram mais de 100 sindicatos que mais tarde formariam a Central dos Trabalhadores Sandinistas (CST).

“A primeira manifestação de trabalhadores na Nicarágua foi realizada pelos sindicatos formados pela BSB em 14 de agosto. Segundo a revista Time, 3.000 trabalhadores da fábrica participaram, exigindo o pagamento de seus salários perdidos e a suspensão de demissões. Além disso, delegações do CDS e das milícias participaram desta mobilização para entregar milhares de assinaturas ao GRN e à FSLN pedindo a nacionalidade nicaraguense para os estrangeiros da BSB. Desta forma, pediram uma inversão da política de expulsar os internacionalistas da Brigada do país ou suspender suas atividades (sic.)”[13]. Devido a sua posição crítica e sua política de independência programática, “a Brigada Simon Bolívar, que também propôs estender a luta a El Salvador, foi expulsa do país (para o Panamá, em colaboração com o ditador Torrijos) e os militantes trotskistas foram perseguidos”.[14]

A BSB propos uma saída: a organização popular independente dos burocratas e empresários para promover um programa socialista para a Nicarágua e para a América Central. O comando da FSLN não aceitou que as brigadas tivessem independência política e organizacional, interviram nos sindicatos, os burocratizaram através da CST e expulsaram a BSB da Nicarágua para a cruel ditadura panamenha que os torturou. Esta experiência da BSB mostrou a política antidemocrática, de conciliação de classes e que a direção da FSLN é uma burocracia.

O povo em rebelião quer tudo, a direção traidora falha.

São 41 anos sabendo que podemos derrubar ditadores e que a revolução de 1979, forjada com a organização e a luta de milhares de crianças e jovens e do povo nicaraguense, poderia ter sido de outra forma, mas que depois do triunfo o regime anterior foi mantido e não avançou no curso revolucionário, não chegou sequer a “democracia”, mesmo que burguesa. Hoje, com este marco na luta de classes na Nicarágua tendo sido tão deformado, é compreensível o desencanto que a degeneração desta “nova Nicarágua” causou nas mãos de uma direção burocrática e antidemocrática que reconstruiu o Estado burguês para manter o capitalismo e sustentar o “velho”.

A FSLN ficou no meio do caminho da tarefa de redefinir tudo e criar um Estado verdadeiramente revolucionário para a maioria. Nesse sentido, as gerações nascidas depois dos anos 1980 cresceram com traumas, perdas familiares, silêncio e luto social que não conseguiram superar em conjunto, porque não existem sequer políticas de memória para remediar coletivamente esses episódios históricos que de alguma forma se repetem hoje. Nossas famílias se sentem traídas e desencantadas, mas nunca abandonaram seu senso de justiça social e dignidade para todos, por isso é importante não abandonar esta perspectiva e resignar as tarefas que ficaram pendentes.

A principal conclusão é que existe uma falta e necessidade de uma direção revolucionária em nosso país, que queira romper com os poderes de fato, o empreendedorismo crioulo e transnacional, e empoderar a sociedade como um todo para assim sermos os arquitetos de nosso próprio destino. Uma direção que lute por um governo dos que nunca governaram: a classe trabalhadora, a juventude, as mulheres, os povos originários e os de afrodescendência. Não é uma utopia, mas uma necessidade urgente.

A partir daqui queremos promover estes processos de reflexão e discussão política coletiva, e a urgência de construir uma alternativa política anticapitalista, feminista, ecossocialista e internacionalista para transformar tudo na Nicarágua e na América Central. Essa é a nossa estratégia e convidamos você a fazer parte dela.

*Este artigo é o primeiro de uma série de três onde analisaremos o papel da direção sandinista em três períodos, caracterizando cada um deles para problematizar seu falso “socialismo”. Nosso próximo artigo abordará o papel da FSLN como um partido de oposição nos anos 1990.

**O Estado Operário e de Transição é, em qualquer caso, uma conquista parcial da revolução na América Central e no mundo. Especificamente, é a consolidação de uma classe política (operária, camponesa e indígena) na construção de uma superestrutura de mobilização permanente que estende e aprofunda a revolução em escala regional. Nosso objetivo não é um Estado operário nacional, mas a criação de condições para novas formas de relações sociais, sem exploração de classe e para o trânsito até a abolição do Estado.


[1]                     http://legislacion.asamblea.gob.ni/normaweb.nsf/9e314815a08d4a6206257265005d21f9/1a224f38057e9dc5062573080055c4de?OpenDocument

[2]                     http://legislacion.asamblea.gob.ni/normaweb.nsf/($All)/1DF920F2FD1A0B40062570A10057BF21?OpenDocument

[3]                     Nicaragua: ¿reforma o revolución? Recopilación de artículos y documentos; Tomo I; Carlos Vig; Bogotá; 1980; p. 38.

[4]                     https://www.ejercito.mil.ni/contenido/ejercito/historia/historia-fundacion-eps.html

[5]                     El Sandinismo y la Revolución Nicaragüense, Nahuel Moreno; Buenos Aires; 2018; p. 6.

[6]                     Cuello, H. F. y Maza, J., Nicaragua: la revolución congelada, Bogotá, 1982; p. 14.

[7]                     http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1979/esp/f260779e.html

[8]                     https://elfaro.net/es/202007/el_salvador/24623/Juicio-jesuitas-Testigos-vinculan-a-Cristiani-Parker-y-agentes-del-FBI.htm

[9]                     Resoluciones de los presidentes centroamericanos Acuerdos de Tela, Quinta cumbre de presidentes centroamericanos, Puerto Tela, Honduras, 7 de Agosto de 1989.

[10]                   Declaración de San Isidro de Coronado; Sexta cumbre de presidentes centroamericanos; San Isidro Coronado, Costa Rica 12 de Diciembre de 1989.

[11]                   https://www.cidh.oas.org/countryrep/Nicaragua81sp/introduccion.htm

[12]                   Cita a Daniel Samper Pizano, El Tiempo, Colombia, mayo de 1979, en https://contrahegemoniaweb.com.ar/2019/08/01/nora-ciapponi-en-la-brigada-simon-bolivar-parte-i/

[13]                   Nicaragua: ¿reforma o revolución? Recopilación de artículos y documentos; Tomo II; Carlos Vig; Bogotá; 1980; p. 528

[14]                   Cuello, H. F. y Maza, J., Nicaragua: la revolución congelada, Bogotá, 1982;p. 16.