Por Alberto Giovanelli
O Haiti acordou na última quarta-feira, 7, com a notícia da morte a tiros de seu presidente, Jovenel Moïse, pelas mãos de um grupo de pessoas que atacou sua residência particular no bairro de Pelerin, em Porto Príncipe, ao amanhecer.
Este acontecimento evidencia mais uma vez a situação catastrófica no país e na região, atormentada por turbulências políticas, sociais e desastres naturais que assolam de forma permanente o país mais pobre da América Latina. No Haiti, calcula-se, segundo informações de organismos internacionais, que mais de 70% da população vive com menos de US$ 2 por dia, a ONU estima que quase 5 milhões de haitianos, de uma população de cerca de 11,5 milhões, sofrem da insegurança alimentar. 1/5 da população, cerca de 2 milhões de pessoas, foi forçada a emigrar. Há 11 anos o país também foi devastado por um dos desastres naturais mais importantes da história recente, um terremoto de magnitude 7 que teve seu epicentro em Léogâne, cerca de 15 quilômetros a sudoeste da capital, Porto Príncipe. Foi o terremoto mais grave ocorrido no Haiti desde 1842. O terremoto e mais dois que se seguiram deixaram 316 mil mortos, 350 mil feridos e milhares de casas destruídas. Estima-se que cerca de 1,5 milhão de pessoas ficaram desabrigadas e 60% da infraestrutura médica destruída.
Não foi o único desastre natural que ocorreu desde então, pois em 2016 o furacão Matthew varreu o sudoeste do país causando 573 mortos e deixando cerca de 2 milhões de vítimas e o furacão Laura passou pelo país em agosto de 2020 também causando dezenas de mortos e danos materiais em seu rastro. As epidemias dizimaram a população. A infecção de cólera de 2010 infectou 520 mil pessoas e matou pelo menos 7 mil. Esta epidemia se tornou endêmica e, embora os casos tenham diminuído, a Covid-19 chegou e voltou a colocar em xeque o já quase inexistente sistema de saúde haitiano. Não há dados confiáveis e a chegada de novas variantes multiplica incessantemente o índice de contágio. Nessa situação de catástrofe humanitária, a instabilidade política e institucional é o resultado previsível, com numerosas gangues armadas, setores parapoliciais e narcotraficantes que são os que realmente controlam o funcionamento do país. Somente no último mês de junho, registros oficiais (nunca confiáveis) declaram mais de 150 pessoas assassinadas e outras 200 sequestradas na área metropolitana de Porto Príncipe. O Exército, que foi eliminado em 1994 para evitar tentativas de golpe (e reintegrado em 2017), tem apenas 500 membros. Os 15 mil policiais do país estão divididos em numerosas sub-gangues que lutam entre si para ocupar e explorar diferentes áreas do território, o que explica as inúmeras denúncias contra essas forças que têm sido acusadas de cometer assassinatos indiscriminados e até mesmo a segurança da ONU. O Conselho pediu ao Haiti que investigue os massacres de La Saline em 2018 e os massacres de Bel-Air em 2019, nos quais dezenas de civis foram mortos.
Como dissemos, esse assassinato confirma que a instabilidade política é uma constante no país. A título de exemplo, podemos destacar que desde a queda da ditadura de Duvalier (Papa Doc e Baby Doc) em 1986 até hoje, mais de 20 governos se sucederam sem alcançar a menor saída ou “ordem institucional”. Pelo contrário, a partir de 2015 a crise deu um salto exponencial. Naquele ano, o então presidente Michel Martelly finalizou seu mandato e Moise iria sucedê-lo após eleições polêmicas que forçaram a nomeação de um presidente interino de outro partido. Mais de um ano após, a autoridade eleitoral reconheceu a vitória do agora assassinado Jovenel Moïse, um empresário de “sucesso” que apesar da sua origen humilde, conseguiu aliados de empresas agrícolas, fundamentalmente produtores de banana, para se tornar um dos homens mais ricos do país. Mas em 2015, ainda era um completo estranho no mundo político, quando o ex-presidente Martelly o indicou como candidato à presidência do partido de centro-direita Tèt Kale, copiando a política em voga daqueles anos, de “novidade”.
Toda a gestão de Moïse foi atravessada por crises, mobilizações, epidemias, terremotos, protestos, assassinatos, etc. deveria ter sido finalizada, segundo a oposição, em 7 de fevereiro, quando se cumpriria 5 anos de governo iniciado em 2016. Moïse, porém, insistiu que deveria governar por mais um ano pelo fato de só ter tomado posse em 7 de fevereiro de 2017. Em janeiro de 2020, Moïse dissolveu o Parlamento e desde então governou o Haiti por decreto, sendo “o único e exclusivo poder no país”. A onda de protestos que essa situação gerou também foi alimentada por escândalos de corrupção onde funcionários do governo se apropriaram indevidamente de US$ 3,8 bilhões em ajuda da PetroCaribe, programa de assistência ao petróleo.
É impossível não falarmos do papel nefasto das “missões humanitárias” e das intervenções militares de organizações internacionais nesta crise. Após o golpe que derrubou Jean-Bertrand Aristide em 2004, o Haiti sofreu intervenção militar dos Estados Unidos, França e Canadá. Os estadunidenses encontraram um aliado ideal e inesperado no Brasil, na época governado por Lula/PT, que foi um entusiasta promotor da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) entre 2004 e 2017, enviando o maior contingente militar (quase 30 mil soldados) e mantendo o comando da missão. O resultado foi catastrófico, centenas de mulheres haitianas foram estupradas e seus filhos abandonados pelos capacetes azuis. Os “filhos da Minustah” somam-se a uma longa lista de males que inclui, além dos crimes sexuais, as execuções sumárias e o uso excessivo da força contra a população mais pobre.
O assassinato de Moïse ocorreu então, havendo fracassado cada uma das iniciativas imperialistas e apenas há dois meses das eleições presidenciais, convocadas para 26 de setembro, onde Moïse não pôde ser candidato, ficando a dúvida sobre o desenvolvimento dos acontecimentos. Por exemplo, o primeiro-ministro interino, Claude Joseph, que divulgou a morte do presidente e se autodeclarou no cargo, quis acalmar a população e ratificou as eleições, mas obviamente não há certezas no conturbado Haiti. A única coisa que podemos afirmar sem hesitar é que até que se modifiquem as raízes que condenam o povo haitiano à miséria, tudo continuará a desmoronar à custa da fome e da vida de milhões para os quais a “comunidade internacional” não tem resposta, na verdade acentuam a exploração, decadência e morte.