A 85 anos do assassinato de Leon Trotsky, compartilhamos o seguinte artigo.

Por David Morera Herrera


Sob a bandeira da Quarta Internacional


Com a falência da Terceira Internacional, corrompida pelo stalinismo, Trotsky propôs-se a realizar a tarefa que considerava a mais importante de sua vida: a fundação de uma nova organização revolucionária internacional, a Quarta Internacional. Um trabalho árduo em meio a uma situação profundamente adversa.

O mapa da Europa estava obscurecido com o avanço das hordas nazifascistas. No interior da URSS, Stalin havia consumado o extermínio físico da oposição de esquerda. Nessas condições, o mundo afundava numa selvageria destrutiva nunca antes vista, a Segunda Guerra Mundial.

Trotsky estava ciente de que a Quarta Internacional nascia “nadando contra a corrente”, com recursos escassos, composta apenas por pequenos grupos inexperientes, perseguidos implacavelmente pelo imperialismo e pelo stalinismo, que ousavam levantar a bandeira do marxismo revolucionário, contra ventos e marés.

Pouco antes da fundação da Quarta Internacional, Erwin Wolf, que foi secretário de Trotsky durante sua estada na Noruega, morre em Barcelona enquanto combatia as tropas franquistas durante a guerra civil espanhola. Na França, são assassinados por agentes stalinistas: Rudolf Klement, secretário de organização, encarregado dos preparativos do Congresso de fundação da Quarta Internacional, e depois Leon Sedov, filho mais velho de Trotsky, que se encarregava dos contatos clandestinos dentro da URSS e de publicar em russo o Boletim da Oposição de Esquerda. Esses três jovens camaradas, mortos tragicamente no alvorecer da constituição da Quarta Internacional, sintetizam o drama da época e as condições severas em que ela nasceu.

Em 3 de setembro de 1938, na localidade de Périgny, no subúrbio de Paris, na França, uma reunião clandestina fundou o Partido Mundial da Revolução Socialista, mais conhecido como Quarta Internacional. Trotsky não estava presente, porque não lhe era permitido deixar o México e sua vida já havia sido seriamente ameaçada. Estavam presentes 21 delegados e delegadas em representação de organizações revolucionárias de 11 países.

A conferência foi realizada sob a sombra dos recentes assassinatos e elegeu os três jovens mártires: Wolf, Klement e Sedov, como presidentes honorários. Junto com Klement, desapareceram relatórios sobre o trabalho de grupos trotskistas em vários países. Por razões de segurança, a conferência fundacional realizou uma única sessão na data indicada e aprovou o Programa de Transição, redigido por Trotsky que, em nossa opinião, é um documento programático muito valioso para o marxismo revolucionário, como continuidade e atualização do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels.

O Programa de Transição parte da constatação de que a crise de direção revolucionária do proletariado, com as traições da social-democracia e do stalinismo, foi o principal agravante da crise mundial, e assume a resolução dessa crise colocando a principal tarefa que se propõe a nova Internacional.

As charlatanices de todo tipo, segundo as quais as condições históricas ainda não estariam ‘maduras’ para o socialismo, não são senão o produto da ignorância ou de um engano consciente. As condições objetivas da revolução proletária não só estão maduras, como começaram a apodrecer. Sem uma revolução social num próximo período histórico, a civilização humana corre o risco de ser arrasada por uma catástrofe. Tudo depende do proletariado, ou seja, de sua vanguarda revolucionária […]. A crise histórica da humanidade se reduz à crise da direção revolucionária. A economia, o Estado, a política da burguesia e suas relações internacionais estão completamente esterilizadas por uma crise social. O principal obstáculo no caminho da transformação do Estado pré-revolucionário em Estado revolucionário é o caráter oportunista da direção proletária: sua covardia pequeno-burguesa diante da grande burguesia e sua associação traidora a ela, mesmo agonizando.

Partindo dessa análise, o Programa de Transição é um sistema de reivindicações transitórias para criar uma ponte entre a situação atual e a consciência das massas populares e as tarefas da revolução socialista. Seu eixo é organizar a mobilização independente da classe trabalhadora e dos oprimidos, bem como a construção da organização revolucionária que a conduzirá até a revolução socialista.


Em uma sociedade baseada na exploração, a moral suprema é a da revolução social. São válidos todos os métodos que elevam a consciência de classe dos trabalhadores, sua confiança em suas próprias forças, sua disposição para a abnegação na luta. São inadmissíveis os métodos que incutem nos oprimidos o medo e a submissão diante de seus opressores, que sufocam o espírito de protesto e a indignação ou substituem a vontade das massas pela vontade de seus dirigentes, a convicção pela coerção, a análise da realidade pela falsificação.

O assassinato de Trotsky

Em 20 de agosto de 1940, aproximadamente às cinco da tarde, em sua casa em Coyoacán, México, Trotsky, aos 60 anos de idade, é mortalmente ferido por Ramón Mercader, um agente da polícia secreta stalinista (GPU), anteriormente recrutado para a execução de trotskistas durante a guerra civil espanhola.

Com o passaporte falso de Jacson Monrad, passando-se por diplomata belga, Mercader, desde o verão de 1938, tornou-se amante de Sylvia Agelof, russo-norte-americana que atuava como secretária pessoal de Trotsky no México. Aos poucos, Mercader se aproximou do círculo familiar de Trotsky e fez amizade com seus guarda-costas. Com o pretexto de pedir a Trotsky que revisasse um artigo que ele supostamente havia elaborado, o assassino destruiu o crânio do revolucionário russo com um picareta de alpinista, que escondia em seu casaco. Trotsky morreu um dia depois: em 21 de agosto, às 19h25.


Joe Hansen, líder do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) estadunidense, acompanhou-o em seu último suspiro. Joe escreveu as seguintes palavras, publicadas pela primeira vez em outubro de 1940, na revista Fourth International:

Eu me apoiei na cama. Parecia que seus olhos haviam perdido aqueles lampejos rápidos da inteligência enérgica tão característica do Velho. Seus olhos estavam fixos, como se já não percebessem o mundo exterior e, no entanto, senti aquela enorme vontade afastando a escuridão que o extinguia, recusando-se a ceder ao seu inimigo até ter cumprido sua última tarefa. Lentamente, entrecortado, ele ditou, escolhendo dolorosamente as palavras de sua última mensagem à classe trabalhadora, em inglês, uma língua que lhe era estranha. Em seu leito de morte, ele não esqueceu que seu secretário não falava russo!: ‘Por favor, diga aos nossos amigos… Estou certo… da vitória… da Quarta Internacional… Avante’.

Por ocasião do assassinato de Leon Trotsky, André Breton, destacado expoente da corrente surrealista, coautor, junto com Diego Rivera e Trotsky, do Manifesto por uma Arte Independente e Revolucionária, expressou da seguinte forma o impacto desse crime:

Muitas vezes se utilizou no surrealismo a frase de Lautréamont: Toda a água do mar não bastaria para lavar uma mancha de sangue intelectual; mas aqui já não é preciso colocá-la em sentido figurado”.

Na biografia Vida e Morte de Leon Trotsky, escrita por seu camarada Victor Serge, consta:

Ele era íntegro no sentido mais amplo do termo: não concebia descontinuidades entre a conduta e as convicções, entre a ideia e o ato […] Sua retidão moral estava ligada a uma inteligência objetiva, mas apaixonada, sempre voltada para o profundo e amplo, para o esforço criativo e a luta justa. E era ao mesmo tempo simples. Ele escreveu no canto de um livro cujo autor aludia ao seu desejo de poder: ‘Outros terão desejado o poder pelo poder. Eu sempre ignorei esse sentimento. Busquei o poder coletivo das inteligências e vontades’.

A luta continua

O assassinato de Trotsky não era somente uma simples vingança pessoal de Stalin, mas foi um ato político friamente calculado. A morte de Trotsky privou a Quarta Internacional do único dirigente sobrevivente da geração que resumia a experiência e a tradição revolucionária mais valiosa do século, desde a luta contra a autocracia czarista e a emigração nos círculos marxistas da Europa, passando pela Revolução Russa de 1905 e 1917, o Exército Vermelho e a Terceira Internacional, até o combate contra a degeneração stalinista e a barbárie fascista.

Mas 80 anos após seu assassinato, o outrora poderoso aparato stalinista que tentou apagar com sangue e fogo a memória e os ensinamentos de Outubro de 1917 e enterrar o nome de Trotsky, caiu estrondosamente, enquanto a figura de Trotsky adquiriu uma estatura profética diante do veredicto da própria história.

A partir da queda do Muro de Berlim em 1989 e após um breve período de abertura econômica e política (conhecido como perestroika e glasnost) na antiga URSS, com Gorbachev à frente, precedido por Yeltsin, os regimes mal chamados de socialistas da ex-URSS e do Leste Europeu caíram um a um, diante da mobilização das massas populares e da pressão do imperialismo.


No entanto, como não havia uma direção revolucionária que canalizasse o descontentamento das massas populares nesses países, as burocracias ex-“comunistas”, recicladas em parceria com o imperialismo, abriram as portas para a assalto da economia nacionalizada e selaram o caminho da restauração capitalista. Em outros Estados, como China, Cuba e Vietnã, o controle totalitário da burocracia, que ainda se autodenomina “comunista”, permanece intacto, mas também se caminha, em ritmos diversos, para a restauração do capitalismo e a reversão das conquistas sociais de suas respectivas revoluções.

Se cumpriu a previsão de Trotsky, num sentido negativo:


Assim, o regime da URSS encarna contradições terríveis. Mas continua sendo um Estado operário degenerado. Este é o diagnóstico social. O prognóstico político tem um caráter alternativo: ou a burocracia, tornando-se cada vez mais o órgão da burguesia mundial no Estado operário, derrubará as novas formas de propriedade e mergulhará novamente o país no capitalismo, ou a classe operária esmagará a burocracia e abrirá o caminho para o socialismo”.

Infelizmente, no segundo pós-guerra, a Quarta Internacional não passou no teste, não foi capaz de resolver o fio condutor da crise da humanidade: a crise de direção revolucionária da classe trabalhadora, tal como se propôs em sua fundação. A extrema fraqueza dos grupos que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, sua marginalidade, a adaptação e as pressões por parte dos movimentos e aparatos burocráticos e pequeno-burgueses levaram a uma crescente desintegração em múltiplos fragmentos daqueles que se autoproclamam herdeiros da tradição da Quarta Internacional.

Essa é a razão fundamental pela qual a burocracia stalinista acabou por arruinar os Estados operários que, de degenerados burocraticamente, entraram rapidamente em um processo de decomposição e desmantelamento, rumo à restauração capitalista. Esse quadro político, expressando uma nova correlação de forças, levou o movimento operário e popular, em escala mundial, de derrota em derrota, até impor, na década de 1990, um profundo retrocesso em sua consciência e organização, o que levou os ideólogos burgueses a proclamar em voz alta a vitória definitiva e indiscutível do sistema capitalista e a impor uma dura contraofensiva neoliberal em todo o mundo, que conduziu à precarização, à informalização e à flexibilização trabalhista da classe trabalhadora, ao mesmo tempo que desmantelou boa parte dos direitos sociais e reduziu significativamente as verbas de sindicalização.

Mas, apesar do retrocesso do sujeito político e social, a classe trabalhadora, apta para a revolução socialista, o capitalismo, por sua natureza cada vez mais destrutiva, continua incubando e aprofundando as contradições irreconciliáveis que lhe são inerentes, que Marx revelou em sua obra-prima O Capital: crítica da economia política. As tendências recessivas recorrentes da economia mundial e suas recuperações efêmeras, desde o estouro da bolha imobiliária em 2008, são acompanhadas por uma polarização e agravamento da crise política e social, que tem múltiplas manifestações. Surgem novas lutas operárias e populares que, apesar de não contarem com direções revolucionárias à frente, instintivamente buscam uma saída para a miséria crescente, a brutalidade e as privações que o sistema impõe em diferentes latitudes.

Em uma de suas últimas obras, Em defesa do marxismo, Trotsky escreveu as seguintes palavras, ainda aplicáveis ao nosso tempo:

[…] a tarefa fundamental de nossa época não mudou, pela simples razão de que não foi resolvida […]. Os marxistas não têm o menor direito (se a desilusão e a fadiga não forem consideradas direitos) de tirar a conclusão de que o proletariado desperdiçou todas as suas possibilidades revolucionárias e deve renunciar a todas as suas aspirações […]. Vinte e cinco anos na balança da história, quando se trata das mudanças mais profundas nos sistemas econômicos e culturais, pesam menos do que uma hora na vida de um ser humano. De que serve o indivíduo que, por causa dos reveses sofridos em uma hora ou um dia, renuncia ao propósito que estabeleceu com base em toda a experiência de sua vida?

Nos últimos anos de sua vida, Trotsky teve que observar a debandada de muitos intelectuais de esquerda, que renegavam o marxismo. O horror nazifascista e a amarga decepção com o stalinismo foram o caldo cultural desse estado de espírito, que acabou levando muitos deles a embelezar e se reconciliar com a democracia burguesa imperialista. A respeito desse fenômeno, ele observou:


É indiscutível que o antigo Partido Bolchevique se desgastou, degenerou e se tornou obsoleto. Mas a ruína de um determinado partido histórico que durante um período se baseou na doutrina marxista não significa a ruína dessa doutrina. A derrota de um exército não invalida os preceitos fundamentais da estratégia. O fato de um artilheiro errar o alvo não invalida de forma alguma a balística, ou seja, a álgebra da artilharia. O fato de o exército do proletariado sofrer uma derrota ou de seu partido degenerar não invalida de forma alguma o marxismo, que é a álgebra da revolução […].

De qualquer forma, nenhum revolucionário sério pensaria em usar como vara para medir o andamento da história os intelectuais confusos, os stalinistas desiludidos e os céticos frustrados.

Na verdade, em pleno século XXI, a disjuntiva que Rosa Luxemburgo levantou: “Socialismo ou Barbárie”, não só continua válida, como se tornou ainda mais premente e crua. Longe do mecanicismo dos manuais stalinistas e suas profissões de fé, não há nenhum desígnio “Deus Ex Machina” que conduzirá inevitavelmente a humanidade a algo como o “paraíso socialista”. O caminho é muito doloroso. Tudo depende da dialética da luta de classes e seus resultados, tudo depende se a vanguarda operária e popular, conscientemente, pode se elevar a sujeito social e político de sua própria emancipação, como demonstrou, parcial e potencialmente, com a Revolução Russa de outubro de 1917.

Por fim, é preciso destacar que o marxismo é o mais distante de um dogma ou receita. Assim como a vida e o universo se transformam constantemente, o marxismo é uma ciência crítica e aberta, a serviço da emancipação da humanidade, cujo corpo teórico nada mais é do que a sistematização da experiência revolucionária dos oprimidos em sua luta titânica.


Assim, o marxismo do século XXI, naturalmente, precisa se atualizar com os novos fenômenos da realidade. É imprescindível, por exemplo, que se nutra das contribuições inovadoras das correntes feministas socialistas e ecossocialistas, na medida em que a derrubada do capitalismo é inseparável da liquidação do patriarcado e, ao mesmo tempo, se conjuga com o conflito cada vez mais alarmante que deriva da destruição voraz do ecossistema planetário, imposta pelo irracional sistema de lucro.


De nossa parte, nossa melhor homenagem à obra e ao exemplo singular de Leon Trotsky é continuar sua longa marcha em busca de abrir o horizonte socialista para toda a humanidade.