Por: Sergio García

Os resultados da noite de domingo marcam um ponto de inflexão. São daqueles momentos que fazem vacilar todos os planos políticos prévios. São uma fotografia, neste caso tremenda para o governo nacional, que aparece com a possibilidade de transformar-se, para o oficialismo, em um filme de terror.

Apenas quatro dias antes, em Moreno, em um ato de encerramento libertário com pouca gente presente de forma genuína e algumas pessoas que chegaram pagas, Milei havia voltado a nacionalizar a eleição a fundo e insistido que iriam pintar a província de roxo. Nada disso aconteceu, e grande parte da população decidiu lhe dar um tremendo golpe político. A força do presidente, La Libertad Avanza, foi varrida, ficando em segundo lugar e separada do primeiro por uma diferença esmagadora de mais de treze pontos percentuais. Uma diferença que reflete o descontentamento e o desgaste entre o governo e um amplo setor da sociedade.

A La Libertad Avanza, do presidente Milei, junto ao PRO, que o acompanhou por trás, ficou relegada a um distante e amargo segundo lugar, com apenas 33% dos votos. Essa cifra representa uma queda estrepitosa para uma força que aspirava pintar a província de roxo e que agora evidencia seu teto eleitoral e seu rápido desgaste. A derrota foi tão contundente que só conseguiu vencer em duas das oito seções eleitorais: a Quinta e a Sexta. Perdeu em todas as demais, inclusive perdendo claramente na 3ª e na 1ª seção, as duas mais populosas. A surra foi muito significativa, afastando qualquer dúvida sobre a mensagem enviada pelo eleitorado.

As eleições da Província de Buenos Aires, o distrito eleitoral mais grande e significativo do país, decidiam a renovação de 46 deputados e 23 senadores provinciais, além de vereadores e conselheiros escolares. Porém, acima desses cargos, os comícios se transformaram em um plebiscito sobre a gestão do presidente. O resultado foi categórico: Milei beijou a lona. Apenas tentou se levantar para falar aos seus, desde seu bunker. E ali voltou a perder a pouca credibilidade que lhe resta, com um discurso que parecia não entender nada do que estava acontecendo. Ensaiando uma autocrítica muito tímida, para rapidamente ratificar o rumo de tudo. Popularmente se diz que fingiu demência e seguiu em frente. Só que, à frente, há uma parede dura com a qual vai se chocar. Já o lembraram disso desde segunda-feira cedo os mercados, que começaram derrubando as ações argentinas em Wall Street e com o dólar pisando no acelerador. Por trás disso, é evidente que a grande burguesia e o poder financeiro imperialista já começam a ter mais dúvidas e incertezas sobre este governo e seu futuro.

Razões de uma derrota contundente

Por todo o país, milhões de trabalhadores e jovens estão comemorando a derrota de Milei, um sentimento que compartilhamos. Ao mesmo tempo, é necessário aprofundar as razões de sua queda. Esta jornada eleitoral em Buenos Aires se desenvolveu sob a sombra de uma crise política detonada há poucas semanas pelo escândalo de corrupção da ANDIS. Os áudios do ex-funcionário Diego Spagnuolo, que envolviam a própria irmã do presidente, Karina Milei, e seu entorno mais íntimo em um esquema de propinas, mergulharam o governo em um escândalo inédito, desmontando até os alicerces seu discurso de “casta” versus “povo”. Contudo, esse escândalo foi apenas a gota que transbordou o copo, sendo apenas parte da análise que explica a contundência da derrota.

A explicação central para este resultado está no mal-estar social acumulado, um descontentamento que brota do bolso vazio de milhões de famílias trabalhadoras. A derrota também se explica pelo fato de que houve setores muito sensíveis que há meses enfrentam de forma consequente o governo, como aposentados, trabalhadores do Garrahan, o movimento da deficiência, a universidade e a ciência, e setores operários que lutam por salários dignos. As urnas bonaerenses materializaram o que já se percebia nas ruas: a rejeição majoritária a um modelo de ajuste econômico, repressão e corte sistemático de direitos. Por isso a derrota de Milei é o triunfo de todos os setores que vinham lutando contra este governo e que, evidentemente, têm um forte apoio social que agora devem usar a seu favor.

Por que o peronismo ganha?

O resultado final não deixou espaço para especulação e pinta um panorama político reconfigurado para a província. Os resultados oficiais confirmaram a magnitude do revés para o oficialismo nacional e delinearam um novo tabuleiro de forças. A frente peronista Fuerza Patria conquistou uma vitória folgada, com 47% dos votos. Essa cifra, embora lhe dê um triunfo indiscutível que rapidamente buscou capitalizar, deve ser lida com cautela e em profundidade. Em primeiro lugar, expressa mais um voto útil anti-Milei do que um apoio entusiástico à sua gestão provincial. De forma alguma há um 47% que apoia o projeto do peronismo: dentro desse percentual há uma grande faixa que vota “com o nariz tampado”. Ao final, um setor da população decidiu ir votar — 63%, mais do que em todas as eleições deste ano —, refletindo que uma parcela queria derrotar Milei e encontrou no peronismo a possibilidade de fazê-lo. Liderado por Kicillof, o peronismo capitaliza esse voto de protesto contra o governo nacional. Outro setor importante também se manteve sem votar, como outra forma de descontentamento social.

É neste ponto que se torna crucial fazer uma leitura precisa e não comemorativa do triunfo do peronismo da Fuerza Patria. Seu primeiro lugar não representa, de forma alguma, uma vitória própria baseada em suas virtudes ou em um respaldo genuíno e massivo ao seu projeto. Não devemos esquecer que o peronismo é governo na província e que Axel Kicillof, junto com a imensa maioria dos prefeitos de sua base, aplica seu próprio ajuste sobre os trabalhadores.

Longe de apresentar uma oposição firme para derrotar e frear o governo agora, a vitória peronista já mostrou seus limites estratégicos na noite de domingo, quando o próprio Kicillof, em seu discurso triunfal, chamou Milei ao “diálogo”, à “negociação” e a “mudar o rumo”. Uma posição que busca administrar o descontentamento, canalizá-lo institucionalmente e desativar todo seu potencial mobilizador, em vez de incentivá-lo e aprofundá-lo para derrotar definitivamente o plano de fome. Para além das boas intenções de seus eleitores e simpatizantes, não surpreende que a direção do peronismo incentive essa política, desde um palco repleto de prefeitos ajustadores e representantes da burocracia sindical que, durante todo este tempo, não moveram um dedo para enfrentar Milei. Essa política equivocada é lógica, pois não podemos esquecer que o PJ é um pilar do regime burguês argentino e, portanto, sempre atua em sua defesa sem sair dos limites do sistema. Essa postura do PJ é justamente o que Milei tentará usar para ganhar tempo e tentar recompor-se — algo que talvez já não consiga.

A terceira opção ligada a outros governadores

A terceira força a nível provincial foi Somos Buenos Aires, com 5,2%, apoiada em algumas seções do interior e como reflexo da crise e fragmentação do espaço de centro-direita não peronista. Um setor que, de maneira oportunista, para não ficar atrelado à crise pela qual o governo passa, criou seu próprio selo, evidenciando o aval de uma fração burguesa, que incentiva um fenômeno mais nacional, liderado por Córdoba e Santa Fé, o novo espaço “Provincias Unidas”.

Construído por dirigentes políticos que até pouco tempo atrás foram fundamentais para que o governo de Milei pudesse avançar com o ajuste atual no Congresso. Ao calor desta derrota libertária, seguramente este setor decidirá aprofundar sua articulação rumo a outubro, onde espera nacionalizar-se ainda mais.

Boa eleição da Frente de Esquerda, sendo 3ª força no conurbano

Um dado muito importante desta eleição foi que, apesar de um setor da população ter optado por um voto útil para derrotar Milei, uma importante faixa de trabalhadores e da juventude decidiu apoiar e votar na Frente de Esquerda, que superou os 4,3% em toda a província e na 3ª seção obteve uma votação maior e conseguiu eleger dois deputados, uma nova conquista política para esta coalizão de esquerda anticapitalista e socialista. Diferente do voto no peronismo, que contém uma grande parte de votos emprestados, a FIT-U resiste à polarização porque expressa uma parte importante do eleitorado convencida de apoiar uma alternativa diferente e de esquerda.

A FIT-U, embora por pouco não tenha sido a terceira força em toda a extensa província de Buenos Aires, o foi em sua zona central de maior população e mais estratégica; fomos a 3ª força na 1ª seção com 4,2%, também na 3ª seção com 5,6%, ou seja, nas duas seções que concentram o conjunto dos municípios operários e populares de todo o conurbano. E também fomos a 3ª força na 8ª seção de La Plata, capital provincial, obtendo ali 5,5%. Tudo isso reflete que a esquerda mostrou níveis maiores de apoio e força em todos os grandes centros neurálgicos do eleitorado operário e popular. Esse crescimento não foi circunstancial nem isolado; em municípios operários-chave como La Matanza, a esquerda superou 7%, enquanto em distritos como Merlo, Quilmes, Berisso e Lanús os resultados foram igualmente significativos. Foi uma campanha feita no braço, sem acesso aos recursos milionários dos aparatos tradicionais, sem publicidade midiática massiva e sem recursos do Estado para fazer campanha. Ainda assim, com grande esforço, conseguiu conectar com um setor da sociedade cansado das opções tradicionais.

A Frente de Esquerda sai desta eleição bem posicionada para tudo o que vem pela frente. Desde já é muito mais o que poderia avançar, tanto nas eleições quanto, sobretudo, nas lutas sociais, se se dispusesse a ir muito além de uma frente eleitoral. Se apenas como unidade eleitoral conseguimos tudo isso, não é difícil imaginar quanto mais poderíamos incidir sem essa limitação. Diante das convulsões e tensões sociais que se aproximam, mais do que nunca, desde o MST insistimos em nossa proposta: que a Frente de Esquerda avance para conformar um partido comum de tendências ou correntes internas organizadas democraticamente, que permita incluir lideranças sociais, intelectuais e grupos aliados que nos acompanharam nesta eleição. Na noite mais escura de Milei e diante das lutas e crises de grande magnitude que se aproximam, todo esse debate de fundo e estratégico ganha atualidade e urgência.

O desempenho eleitoral da Frente de Esquerda é relevante e seu resultado não é um dado menor; é o reflexo de uma campanha construída desde baixo, nos bairros, fábricas e universidades, que se apresenta como uma opção consequente e sem duplo discurso. Como afirmou nossa deputada eleita pelo MST na FIT-U, Ana Paredes Landman, durante a celebração de domingo à noite:

“A derrota do governo, que hoje ficou exposta e que muitos já apontam como uma queda contundente, não se explica apenas pelo escândalo das propinas, mas, fundamentalmente, pelo acúmulo de lutas que o enfrentaram nas ruas. Lá estiveram os trabalhadores do Garrahan, os movimentos das pessoas com deficiência, os aposentados e tantos setores populares que, com o apoio da Frente de Esquerda, mantiveram viva a resistência enquanto outros setores ligados à burocracia sindical e ao peronismo optaram pela passividade. O bom resultado eleitoral da Frente de Esquerda é um reconhecimento a quem mantém uma proposta consequente, a quem não se vira para outro lado e sempre defende os direitos dos trabalhadores e da juventude nas legislaturas e nos Conselhos Municipais.”

Para essa perspectiva nos preparamos. De maior crise, lutas sociais e hipóteses de giros bruscos na situação no horizonte. Dispomo-nos a fortalecer a luta nas ruas contra este governo, a não lhe dar tempo nem oxigênio, como equivocadamente propõe o peronismo. A unir cada luta de baixo, a coordená-las e impulsioná-las mais do que nunca e a seguir insistindo na necessidade de massificar a luta para que vá embora todo este governo de corruptos, ajustadores e repressores. Essa é a tarefa entre estas eleições e as nacionais de outubro, onde também travaremos uma forte batalha política por esses objetivos. E por construir uma alternativa cada vez maior e mais forte que lute por um governo dos trabalhadores e pelo socialismo.