Por: Francisco Torres
Nepal, o pequeno país himalaio encravado entre a Índia e a China, conhecido oficialmente como República Federal Democrática do Nepal, vive uma das rebeliões populares mais massivas, convulsas e radicalizadas dos últimos anos. A juventude sublevada obrigou o governo a renunciar. A crise desencadeada no Nepal elevou para 30 o número de mortos pela repressão e pela violência social.
Cerca de 25 pessoas morreram nesta segunda-feira, em sua maioria assassinadas pela repressão policial no primeiro dia de protestos, entre elas a esposa do ex-primeiro-ministro Jhalanath Khanal, queimada viva em sua casa. Também foi encontrado o corpo de um homem em uma das casas incendiadas. Mais tarde somou-se o assassinato de outras cinco pessoas pela Polícia durante o motim e a tentativa de fuga do centro penitenciário juvenil de Banke, no oeste do país.
O Exército do Nepal também abriu fogo contra prisioneiros que tentaram escapar da prisão do distrito de Dhading, deixando um morto e sete feridos. Isso ocorre em meio a fugas massivas de mais de 3.000 presos de outras cadeias, incluindo lideranças políticas da oposição encarceradas.
Katmandu e outras regiões em chamas contra os símbolos do poder
A queima dos principais prédios do governo, do parlamento, da justiça e das sedes de partidos políticos, das residências de mais de vinte autoridades do governo; a surra no ex-primeiro-ministro e a morte de sua esposa, queimada durante a ocupação de sua casa; a perseguição e o ataque ao ministro da Economia, Bishnu Paudel, que teve suas roupas arrancadas, foi espancado e jogado semidespido no rio Bagmati, são as imagens que correm o mundo de uma rebelião que não cessa.
Nesta terça-feira, a capital do Nepal, Katmandu, estava tomada por colunas de fumaça negra e chamas intensas que ainda ardiam após dois dias de furiosos e massivos protestos que desafiaram o toque de recolher, enfrentaram brutal repressão e forçaram a renúncia do primeiro-ministro Khadga Prasad Sharma Oli, do Partido Comunista do Nepal (Marxista-Leninista Unificado, CPN-UML), que liderava o governo desde julho de 2024. Outros ministros também renunciaram, acusando seu próprio governo de “comportamento ditatorial”. Até quarta-feira, dia 10, o fogo ainda não havia sido apagado na maioria dos prédios governamentais… A rebelião continua.
Estamos diante de uma semi-insurreição popular, liderada pela juventude da chamada “Geração Z”, cansada de viver na miséria diante da corrupção ostensiva da classe política e empresarial. A revolta espalhada pelo país abriu uma profunda crise política, um vazio de poder que levou à queda dos principais representantes do governo.


O estopim: miséria, censura e balas
A faísca foi a proibição do governo ao uso de redes sociais, mas a indignação popular vem de anos de miséria capitalista. Os protestos da juventude afetaram todos os setores – político, econômico, social, educação, saúde, transporte, comércio – e as ações se espalharam por todo o país.
A imprensa internacional e local destaca que o estopim da rebelião foi a decisão do governo de bloquear 26 redes sociais (como Facebook, WhatsApp, Instagram e YouTube), sob o pretexto de conter as “fake news”. Para milhões de jovens, isso foi uma tentativa de censurar vozes críticas e atacar a liberdade de expressão. Assim, o protesto, organizado inclusive através dessas mesmas redes, explodiu com força.
No dia 08, segunda-feira, dezenas de milhares marcharam até o Parlamento. A polícia respondeu com gás lacrimogêneo, caminhões de água e tiros. O governo teve que recuar dessa proibição, mas era tarde demais. A renúncia ocorreu após a brutal repressão em que as forças de segurança abriram fogo contra dezenas de milhares de manifestantes que cercavam o Parlamento, assassinando 19 pessoas a tiros.
Segundo um médico do Centro Nacional de Trauma, principal hospital do país, “muitos estão em estado grave e parecem ter levado tiros na cabeça e no peito”, ao receber vários dos mortos e dezenas de feridos.
Na noite de terça-feira, o Chefe do Estado-Maior do Exército, Ashok Raj Sikdel, anunciou que o exército assumiria o “controle da segurança” e pediu à população que não saísse de casa, salvo para trabalhos essenciais. Disse querer “proteger o país e os nepaleses”, impondo um toque de recolher indefinido, mas os protestos não cessaram e o descontentamento cresceu após a vitória popular com a queda do governo.
O Exército então convocou negociações políticas para buscar uma saída à crise, dizendo que “qualquer protesto com vandalismo, saques, incêndios ou ataques será tratado como crime”. Isso foi dito depois que o país inteiro ardeu em chamas contra os símbolos do poder político e econômico capitalista. Esperava-se que nesta quarta-feira ocorressem essas negociações a pedido do Exército e do presidente Poudel do Nepal. Nada de bom virá daí para o povo e sua juventude rebelde.
Fúria da juventude, trabalhadores e setores populares
A juventude, os trabalhadores e os setores mais castigados da população explodiram em fúria contra a miséria, a corrupção e as medidas autoritárias do governo. Ataques a prédios oficiais, residências de ministros e o incêndio do Palácio do Governo (Singha Durbar, com seus ministérios e Conselho de Ministros); o Parlamento em Baneshwor; a residência oficial do Presidente do Nepal (Sheetal Niwas); a Suprema Corte; o Tribunal Especial e o Tribunal Distrital de Katmandu – tudo foi devastado pelas chamas e pela indignação social.
Foi um processo nacional: a residência do ex-ministro do Interior foi atacada; a do vice-governador da província de Lumbini foi saqueada e incendiada; quase todos os prédios do governo em Butwal, subcidade metropolitana e centro econômico de Lumbini, foram queimados. Casas de prefeitos, vice-prefeitos e líderes do UML (Partido Comunista do Nepal) e do Congresso foram incendiadas, assim como empresas ligadas a políticos.
A revolta popular queimou as casas de ao menos duas dezenas de ministros, incluindo a do deposto Oli. A raiva não poupou partidos: o governista UML, o Congresso Nepalês e os maoístas foram alvo da indignação.
Foram incendiados também as sedes do Kantipur Media Group, maior conglomerado de mídia do país; a TV estatal em Singha Durbar; a sede da Nepal TV; e até o luxuoso Hotel Hilton em Katmandu. Houve saques e incêndios em empresas e comércios.
São as expressões dessa indignação e rebeldia social acumulada por anos. O cansaço diante de uma classe política privilegiada, corrupta e distante do sofrimento popular explodiu neste levante que volta a modificar a situação política do país himalaio. O protesto foi contra a corrupção, o nepotismo e a impunidade. As redes viralizaram a hashtag #NepoKids, em referência ao luxo ostensivo dos filhos da elite, em contraste com a pobreza da maioria.


País belo, de montanhas imensas, mas empobrecido
O Nepal, em pleno Himalaia, é famoso por suas montanhas e pelos cumes mais altos do planeta, como o monte Everest e outros dos “oito-mil”, devido às suas elevadíssimas altitudes. Possui um destacado patrimônio cultural e uma extensão territorial similar à de Mendoza ou à metade da província de Buenos Aires, mas com quase 30 milhões de habitantes.
Por trás dessa imagem turística e da beleza agreste, o país carrega uma dura realidade de pobreza e desigualdade estrutural: 20% de sua população permanece em extrema pobreza há mais de uma década, um terço das crianças menores de cinco anos sofre atraso no crescimento devido à desnutrição e mais de 40% do seu PIB depende do dinheiro enviado por milhões de migrantes do exterior às suas famílias.
A economia segue baseada na agricultura de subsistência, com baixa produtividade e falta de investimento. Enquanto isso, a elite política e patronal ostenta fortunas e luxos obscenos, perpetuando privilégios que geraram essa revolta.
A corrupção explica o desemprego, a inflação, a precariedade do campesinato e a falta de serviços básicos que criaram terreno fértil para revolta de massas. 43% da população tem entre 15 e 40 anos, com desemprego juvenil próximo a 13%, o que leva milhares a emigrar diariamente para Índia, Malásia e outros países para enviar dinheiro às famílias.
Da monarquia deposta a uma república falida
Até 2006, o Nepal era governado por uma monarquia de mais de dois séculos. A guerra civil, a luta armada e a insurgência maoísta custaram 13.000 vidas, mas puseram fim à monarquia e proclamaram a república em 2008. Porém, a democracia burguesa que surgiu não resolveu as demandas populares. Desde então, governos se alternam sem cumprir promessas, mergulhados em corrupção e ajustes. A Constituição de 2015 não curou essas feridas. Nenhum governo durou mais de dois anos, nem resolveu fome, desemprego ou infraestrutura. Isso alimentou a insurreição urbana e social.
A força da juventude. Nepal e o mundo: a mesma luta
A juventude é a protagonista. O desemprego e a falta de perspectivas alimentaram a revolta que agora transborda. A dimensão, radicalidade e extensão dos protestos mostram que não se trata de um episódio isolado, mas de uma verdadeira rebelião geracional.
A crise do Nepal faz parte de uma onda mundial de rebeliões contra desigualdade, corrupção e governos capitalistas que oferecem apenas miséria e repressão. Como no Chile em 2019, no Sri Lanka em 2022, ou nas revoltas no Oriente Médio, a juventude é a centelha da luta popular.
O Nepal, um dos 50 países mais pobres do mundo, sofre opressão imperialista, planos de ajuste e dívida externa (mais de US$ 12 bilhões), que bloqueiam qualquer desenvolvimento. Índia e China disputam influência, enquanto o povo paga a conta.


Por uma saída socialista
A rebelião mostra que jovens, camponeses pobres e trabalhadores não aceitam pagar a crise. O povo está farto de um regime corrupto, do desemprego, da repressão e dos privilégios de poucos.
A Liga Internacional Socialista expressa solidariedade à juventude e ao povo do Nepal. Rejeitamos a repressão e exigimos justiça para mortos e feridos. Só uma saída socialista e revolucionária – rompendo com o capitalismo, a dívida e o imperialismo – pode abrir um futuro diferente: expropriar corruptos e capitalistas, planejar democraticamente a economia e colocá-la a serviço da maioria.
Enquanto a ONU pede “paz e diálogo” sem condenar firmemente a repressão estatal, em vez da violência social, as embaixadas de Austrália, Finlândia, França, Japão, Coreia do Sul, Reino Unido, Noruega, Alemanha e EUA emitiram uma declaração conjunta pedindo “moderação”.
Até o prefeito de Katmandu pediu calma: “Querida Geração Z, a renúncia do seu assassino chegou. Contenham-se agora! A perda de vidas e propriedades significa a perda de seus próprios bens. Vocês e eu precisamos nos conter… Agora, voltem para casa”, escreveu, ao mesmo tempo que apoiava o diálogo proposto pelo Exército.
Mas a geração sublevada em Katmandu e em todo o Nepal é uma demonstração clara de que há força, indignação e decisão de lutar por um país e um mundo diferentes. A tarefa é transformar essa energia em um projeto político revolucionário e internacionalista que dispute o poder das castas privilegiadas para avançar em uma saída socialista.




