Por Anderson Bean e Brian BeanTempest Collective (EUA)

Em agosto de 2024, Alejandro Bodart, um dos principais membros da Liga Internacional Socialista e representante na assembleia de Buenos Aires, enfrentou acusações criminais por manifestar apoio à Palestina. As acusações foram movidas por uma organização sionista, a Delegación de Asociaciones Israelitas Argentinas (DAIA). A DAIA alegou, de modo calunioso, que Alejandro fez um discurso “antissemita e discriminatório” ao criticar o “Estado sionista e genocida de Israel”. Na época, Bodart foi entrevistado para o Tempest sobre a luta para combater as acusações criminais, que claramente visavam silenciar críticas à entidade sionista. No ano passado, o combate continuou: Bodart teve, inicialmente, as acusações rejeitadas, mas os recursos perseveraram nas tentativas de silenciá-lo e intimidar o movimento. Os membros do Tempest, Anderson Bean e Brian Bean, entrevistaram Bodart em 21 de agosto sobre a luta contínua em torno do discurso e da solidariedade com a Palestina.

Anderson e Brian: Em nossa última entrevista, você estava prestes a ir a julgamento e enfatizou que queria enfrentá-lo de frente em vez de aceitar liberdade condicional. Você poderia começar nos contando o que de fato aconteceu no julgamento, como você o enfrentou “de frente” e o que ocorreu desde então?

Alejandro Bodart: Como disse anteriormente, recusamo-nos a aceitar qualquer tipo de acordo. A DAIA tentou propor um acordo, mas o rejeitamos integralmente e recusamos todas as tentativas de negociação. Esse tipo de processo sempre envolve alguma barganha prévia ao julgamento, mas nós não nos rendemos. Acreditamos ser importante enfrentar essas acusações abertamente e utilizá-las como uma oportunidade para continuar lutando pela causa palestina.

Até agora, passaram-se quatro etapas nos tribunais. Na primeira, o juiz considerou que não havia indício suficiente. De fato, defendeu meu direito de falar sobre o conflito e recomendou que nenhum julgamento fosse realizado. Mas a Câmara de Apelações rejeitou essa decisão e ordenou prosseguimento do caso. Esse primeiro julgamento foi o mais democrático, pois permitiu apresentar testemunhas.

E trouxemos muitas: desde um ganhador do Prêmio Nobel da Paz até líderes da esquerda, bem como membros da comunidade judaica na Argentina que são antissionistas, e um dos parentes mais reconhecidos da vítima de um atentado a bomba contra um centro comunitário judaico em 1994.

Nesse primeiro julgamento, fui absolvido. Porém, a DAIA recorreu, e o tribunal superior – dessa vez sem permitir testemunhas ou depoimentos – me condenou. É assim que as coisas estão atualmente: sou considerado condenado por esse tribunal. Apelamos, e a audiência ocorreu há dois meses, mas ainda aguardamos uma decisão. Não sabemos por que está demorando tanto. Eles devem decidir se mantêm a condenação ou me absolvem.

A verdadeira justiça não está nas decisões desses tribunais — está no que a própria sociedade decide. As pessoas me param na rua para expressar seu apoio. Esse é o veredicto real.

Seja qual for o resultado, haverá novos recursos. Se decidirem a meu favor, a DAIA recorrerá. Se for contra mim, nós recorreremos. De qualquer forma, o caso irá à instância máxima. Naturalmente, já ter duas condenações registradas não é animador — até aqui foram duas decisões favoráveis e uma contrária. Mas este é um caso político, não de justiça. O que estou fazendo é denunciar o genocídio.

Na Argentina, sabemos muito bem o que significa genocídio — nós mesmos vivemos um. Sabemos o papel que juízes e políticos desempenharam, e como muitos dos cúmplices foram julgados e até presos. Foi exatamente isso que disse ao tribunal em minha declaração final: que eles deveriam decidir se queriam ser cúmplices de um genocídio.

Portanto, na verdade, sou eu quem está no banco dos réus, equivocadamente. Os que deveriam estar ali são meus acusadores, pois são eles que estão apoiando o genocídio. O Presidente da República deveria estar sendo julgado, já que apoia abertamente esse genocídio.

Veremos o que o tribunal fará, mas precisam saber que aqui na Argentina — como em todo o mundo — a causa palestina se fortalece a cada dia. O sionismo está cada vez mais isolado, embora ainda detenha enorme poder econômico no país. Após os Estados Unidos, a Argentina pode ser o local com maior influência sionista fora de Israel. Isso é importante. Não temos apenas um presidente pró-sionista, mas também organizações sionistas de peso político e econômico na Argentina.

Entendemos que este é um julgamento político. Continuaremos lutando, independentemente do resultado. Não estou especialmente otimista, pois o Judiciário está profundamente comprometido — colonizado, na verdade — pelos poderes políticos vigentes, e o governo atual é abertamente pró-sionista.

Mas volto a dizer: a verdadeira justiça não está nas decisões desses tribunais — está na sociedade. As pessoas me param na rua para manifestar seu apoio. Esse é o verdadeiro veredicto. Por enquanto, aguardamos a decisão — esperamos que ela saia logo. Se for negativa, recorreremos e seguimos até a Suprema Corte.

Bloco de concreto com mensagem em estêncil: "Libertem a Palestina. O sionismo é racismo".
Barreira de trânsito em Hebron, 2011. Imagem de Montecruz Foto.

Anderson e Brian: Na ocasião, você descreveu seu caso como um “julgamento histórico” que poderia estabelecer um precedente perigoso para silenciar críticas a Israel. Agora, olhando para trás, você acha que essa previsão se confirmou? De que forma seu caso moldou o cenário político e jurídico em relação à liberdade de expressão na Argentina?

Alejandro: Sim, ainda creio nisso. Por exemplo: quando fui condenado em segunda instância, imediatamente surgiram casos abertos contra outras pessoas. Outra dirigente de esquerda, Vanina Biasi, de um partido diferente da FIT-U, por exemplo, de repente teve um processo aberto contra ela. Isso não ocorreu quando fui absolvido — só depois da minha condenação.

Acredito que, como meu caso é o mais avançado até agora, o desfecho determinará se outros juízes se sentirem encorajados a seguir perseguindo outras lideranças e outras vozes críticas. O objetivo deles é calar quem tem maior alcance — quem consegue se conectar com o povo e tem acesso à mídia. Querem transformar-nos em exemplo. De fato, minha condenação repercutiu no mundo inteiro. A mídia sionista internacional — até mesmo em Israel — divulgou essa condenação.

Portanto, penso que, se conseguirmos revertê-la, será também um golpe contra o sionismo, pois não conseguirão nos quebrar. Ao contrário: avançaremos. Aqui na Argentina, os ataques de Milei contra direitos trabalhistas e sociais foram tão intensos que, por certo tempo, a causa palestina encontrou dificuldades para mobilizar.

Mas isso mudou. Recentemente ocorreram grandes manifestações na Argentina, e, no fim deste mês [agosto de 2025], haverá uma marcha ainda maior e mais massiva. As vozes se expandem constantemente. Inclusive o bloqueio midiático foi rompido: acredito que os tribunais estão demorando proferir decisão por saber que haverá reação… A solidariedade tem sido enorme… e isso gera impacto permanente.

Creio que isso se vincula à situação global — às monstruosidades que Israel está fazendo: ver crianças morrerem de fome ou serem baleadas enquanto fazem fila para se alimentar, porque são deliberadamente mortas pela fome. Tudo isso causa indignação. Há poucos dias, aprovou-se a expulsão direta da população: a limpeza étnica completa de Gaza. Isso só intensifica a revolta.

Sabemos que o governo Netanyahu, à medida que se enfraquece e enfrenta crises internas — houve até marchas dentro de Israel —, está tentando avançar. Quanto maior a crise interna, mais tentam escapar dela, avançando ainda mais nesse caminho.

Anderson e Brian: Em nossa última conversa, você explicou como a DAIA usa a definição de antissemitismo da International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA) como arma. Como você vê essa estratégia mais ampla deles?

Alejandro: Exato. Esse é o principal argumento da DAIA — e do argumento sionista em nível internacional: promover processos judiciais e tentar alterar a definição de antissemitismo. Para eles, criticar o Estado de Israel é antissemita. Criticar o sionismo é antissemita.

Isso é absurdo, pois tornaria Israel o único Estado do mundo que não pode ser criticado. Se você o fizer, corre risco de ir à prisão. Você pode criticar quaisquer outro país da Terra — exceto Israel. O mesmo vale para o sionismo: é uma ideologia política de extrema direita.

Você pode criticar qualquer outra corrente política, mas se criticar o sionismo — que não é o mesmo que povo judeu, pois a comunidade judaica é diversificada; alguns são sionistas, mas muitos são antissionistas — eles virão atrás de você.

Estão usando essa estratégia para silenciar as críticas.

Anderson e Brian: Você também enfatizou que o governo de Milei deu novo impulso a essa repressão. Quase um ano depois, como você avalia a relação entre o governo de Milei, organizações sionistas, como a DAIA, e os ataques amplos aos direitos democráticos?

Alejandro: Bem, há cerca de um mês, Milei recebeu o “Prêmio Nobel Judaico” [o Prêmio Gênesis, criado em conjunto com o Estado de Israel] por apoiar Israel, junto com uma premiação de 1 milhão de dólares. Ele está profundamente alinhado a Israel. Eu diria que ele é, junto com Trump, a figura política mais identificada com o Estado israelense.

Milei entou inclusive trazer Netanyahu à Argentina. Convidou-o, embora Netanyahu tenha recuado ao perceber que isso poderia provocar grandes mobilizações no país. Mas o plano ainda não foi descartado. Se for realizado, seria ultrajante, já que Netanyahu é alvo de acusações perante o Tribunal Penal Internacional. Veremos se ousarão fazê-lo.

Milei está totalmente subordinado ao sionismo e conta com meios de comunicação completamente alinhados. Todos os meios de comunicação mostram a bandeira israelense, e alguns programas políticos ligados ao governo funcionam abertamente como máquinas de propaganda, difundindo mentiras e retratando Israel como vítima.

Os tribunais apoiam tudo isso, pois têm o respaldo político do governo. Não existe justiça independente, em nenhum lugar do mundo — muito menos na Argentina. O Judiciário aqui sempre foi vinculado ao poder. Lembremos: durante a ditadura, enquanto pessoas desapareciam, os tribunais faziam vista grossa. Foram cúmplices do governo da época.

Isso sustenta todo esse aparato. E sim, a repressão vai além da causa palestina. Esse governo alterou o regime. Não vivemos mais na mesma democracia burguesa que existia antes de Milei. O regime mudou. Hoje, praticamente toda mobilização é reprimida, pessoas são detidas por quase nada. Manifestações pacíficas são esmagadas.

Criaram serviços de inteligência que investigam cidadãos sem passar pelos tribunais. Vivemos uma mudança de regime na Argentina.

O que eles não conseguiram — apesar de tudo — foi parar as mobilizações. Ao contrário: estão crescendo. Hoje mesmo, à tarde, saí de uma manifestação em frente ao Congresso. Há lutas simbólicas, muitas dirigidas pela esquerda. Nossos companheiros dirigem atualmente o conflito mais importante nos últimos três meses: a defesa do principal hospital pediátrico do país, que este governo deseja desmantelar. O ataque é brutal, mas a resistência popular também o é.

Anderson e Brian: Como se desenvolveu a campanha de solidariedade com seu caso? Que lições a esquerda — tanto na Argentina quanto internacionalmente — deveria apreender da experiência ao enfrentar esse tipo de repressão?

Alejandro: Foi construída uma unidade muito ampla em torno do meu caso, por toda a esquerda. A solidariedade permitiu inúmeras ações e mobilizações. Quase todas as manifestações em apoio à Palestina — aqui há marchas quase diárias — incluem meu caso. Difícil encontrar protesto em que um dos slogans não exija minha liberdade ou repudie essa criminalização.

Eles conseguem massacrar pessoas — inclusive crianças —, mas não vencem, porque cada criança morta atrai mais pessoas à causa palestina.

Isso foi crucial. Como mencionei, as testemunhas em meu favor incluíram figuras muito proeminentes: membros da comunidade judaica, artistas, líderes da esquerda. A centro-esquerda deu algum apoio, mas muito pouco — mostrou-se covarde. A esquerda, no entanto, tem peso real, e isso foi decisivo.

Acredito que os tribunais demoram para decidir porque sabem que haverá reação. E já vemos que a mesma unidade surge em torno dos novos casos, como o de Vanina Biasi. A solidariedade tem sido enorme — realmente enorme — e tem impacto contínuo.

Anderson e Brian: Por fim, como você vê seu caso no contexto global — onde se observam ataques à solidariedade com a Palestina nos EUA, Europa e outros lugares? Você percebe indícios de que essa repressão está enfraquecendo ou se intensificando?

Alejandro: É difícil avaliar se está melhorando ou piorando, mas creio que, certamente, continua. Por exemplo, no Reino Unido, proibiram a Palestine Action, um grupo de ação direta que age principalmente contra fabricantes de armas, acusando-o de “terrorista”. Como houve ampla solidariedade, passaram a rotular todos que defendem esse grupo como terroristas também.

Vejo um duplo padrão global em ação. Os governos, sob pressão social, dizem reconhecer a Palestina como Estado — defendem a solução dos dois Estados etc. — mas, ao mesmo tempo, continuam enviando armas. Criticam ações de Netanyahu, mas reprimem quem defende a causa palestina. Precisam reprimir para evitar o colapso desse Estado.

Na minha opinião, Israel está muito isolado. Consegue massacrar pessoas — inclusive crianças —, mas não venceu, porque cada criança que mata atrai mais apoio à causa palestina. Politicamente, está cada vez mais isolado internacionalmente. Por isso acredito que persistirão em tentar nos silenciar. Mas para cada voz calada, surgem dezenas de novas. E há pessoas como nós — “loucas” como nós — que nunca serão silenciosas.

Disse ao juiz em meu processo: se me condenar, continuarei dizendo exatamente a mesma coisa. Então terá que me condenar por reincidência. Se isso significar ir para a prisão por me recusar a ficar em silêncio, então é isso que devemos fazer — porque faz parte do apoio à Palestina.

Há artistas na Irlanda e no Reino Unido que usam suas plataformas para falar sobre Gaza e defender a Palestine Action, e o governo britânico ameaça rotulá-los como terroristas também. Mesmo assim, continuam, porque muitas pessoas estão dispostas a fazer sacrifícios por essa causa, correndo riscos pessoais.

Isso mostra por que Israel perderá. Estrategicamente, já perdeu, porque não consegue mais enganar o mundo, fazendo-o acreditar que é vítima. Cada vez mais pessoas sabem que isso é genocídio e que a própria existência de Israel como Estado é questionada.

Anderson e Brian: Obrigado. Há algo mais que queira acrescentar?

Alejandro: Só enfatizar que essa causa pertence à humanidade inteira. Vai além da ideologia — além até de nós, da esquerda. Há quase 80 anos levantamos a bandeira da solidariedade com a Palestina, mas durante muito tempo ela foi de uma pequena minoria. Hoje, é uma causa das massas em todo o mundo.

Acredito que qualquer pessoa com o mínimo de noção de humanidade deve apoiar o povo palestino. Como costumamos dizer: se alguém visse uma criança na rua e outra pessoa se aproximasse para atirar na cabeça dessa criança, todos ficariam horrorizados — ninguém defenderia o assassino de uma criança inocente. E é isso que está acontecendo. Neste momento, uma média de 28 crianças morrem todos os dias na Palestina. Essa realidade comove profundamente as pessoas, e creio que está alimentando uma rebelião global que, cedo ou tarde, derrubará o monstro. Devemos seguir adiante.

Um grande muro de concreto cinza paira sobre a cabeça, e "Palestina Livre" está pintado na parte inferior.
O muro do apartheid em Belém (2011). Imagem de Montecruz Foto.

Crédito da imagem em destaque: Gastón Cuello; modificado por Tempest.