Chile: Propostas e debates a partir do feminismo anticapitalista

Usamos como ponto de partida para esta análise a teoria da reprodução social que mostra como a “produção de bens e serviços e a produção da vida são parte de um processo integrado”, citando a Tithi Bhattacharya [i] “A ideia mais importante da teoria da reprodução social é que o capitalismo é um sistema unitário que pode integrar com êxito, ainda que de maneiro desigual, a esfera da reprodução e a da produção” [ii]. Como bem sabemos, o capitalismo não é apenas um sistema econômico que produz mercadorias sob a exploração de trabalhadores, para isso também necessita um sistema de reprodução dessa força de trabalho, fora do trabalho produtivo que lhe permitam sustentam seu funcionamento e é por isso que também é um sistema de relações sociais. Por tanto as perguntas: Quais são as causas deste momento político em particular? Por que no mundo milhões de mulheres se encontram levando a diante lutas simultâneas ? Quais são as causas das enormes mobilizações que vem acontecendo? Por que aparecem fenômenos como Trump ou Bolsonaro? Fazemos as analises a partir disso. Na continuação, esboços da diversidade de elementos que nos parecem importantes para debater sobre o atual momento.

Estamos quase completando duas décadas deste novo milênio e a situação mundial segue atravessada pela crise econômica do capital, iniciada em 2007. Esta crise teve seu epicentro no centro do imperialismo e foi se expandindo para uma escala mundial. Nesse cenário o 1%, as e os capitalistas vão ao único meio que lhe permite oxigenar sua continuidade, que é aprofundar as medidas de ajustes em reformas contra os 99%, a retirada de investimentos em serviços de saúde, aposentadoria, a expansão da terceirização do trabalho, o aumento do desemprego, a redução dos salários, tem também uma expressão sistémica refletida na crise de imigração, a crise ecológica e a disputa inter-imperialista pela hegemonia mundial. Diretamente conectado com isso, no trabalho reprodutivo e de cuidados, as mulheres dentro do espaço familiar devem seguir reproduzindo a vida e atender as consequências vindas da crise e uma parcela altíssima delas deve sair para enfrentar novamente o espaço produtivo da violência dessa crise. Battachara levanta uma questão fundamental: “Como se supõe que as mulheres devam equilibrar a carga de trabalho não remunerado em casa com o trabalho remunerado em tempo integral no local de trabalho? A verdadeira respostas eles não podem dar”[iii].

Partimos para analisar a crise como o ponto que vem configurando um processo global. É nesse sentido que o economista François Chesnais[iv] marca a dificuldade do capitalismo para lançar uma nova fase de acumulação e como a crise será acompanhada cada vez mais com a luta social e o desastre climático. O economista Michael Roberts[v], por sua vez levanta que seguirá a depressão e os ataques ao movimento de massas, alertando que a atual guerra comercial poderia se tornar uma nova recessão, por isso a crise de 2008 ainda não consegue avançar para ponto de estabilidade favorável para os capitalistas recuperarem seus benefícios.

As consequências desastrosas a partir da crise, são combinadas com a queda das velhas direções políticas que foram se formando após a queda do muro, que expressão uma debilidade do centro que tem governado o último tempo. Esta dinâmica levou as velhas direções políticas como a Socialdemocracia europeia ou as recentes experiências de esquerda em nosso continente, os “Progressismos latino-americanos”, foram em sintonia com os sintomas da crise e empreenderam aos planos de ajuste. Para nós, parece importante nos determos nesse ponto, já que processos como o venezuelano que em seu momento foram progressivos, foram se degenerando não apenas em um processo de burocratização, junto com isso foram implementando uma série de medidas econômicas que longe de buscar uma saída anticapitalista, tentaram oxigenar as políticas de dependência e entrega da soberania. A situação venezuelana não pode ser entendida apenas pela acusação permanente de funcionalismo ao imperialismo que empunham com fervor acrítico um setor importante da esquerda e também uma parte do feminismo, é necessário analisar as consequências no trabalho produtivo e reprodutivo que envolve sustentas medidas que fundamentam um projeto a base da renda e especulação do petróleo. Por outro lado e sem estabelecer paralelismos, na Nicarágua um povo que sabe bastante de revoluções hoje enfrente as medidas de ajuste que Daniel Ortega, o mesmo que em ’79 chegou ao poder graças a um dos processos revolucionários mais importantes da América Latina hoje implementa um acordo com o FMI, medidas de precarização contra a classe trabalhadora. Diante dessa precarização forçada se revelam as mulheres e homens camponeses, as e os estudantes, colonos e trabalhadores e estão sendo selvagemente reprimidos pelas forças Sandinistas. Podemos dimensionar o que significa no espaço familiar estar fazendo a comida para uma família que além de enfrentar o ajuste, enfrenta o assassinato de quem sai para freá-lo?

Todas as alternativas citadas acima são para responder nossas primeiras perguntas, porque nesses processos associados e antes do declínio das velhas direções políticas aparecem novos fenômenos políticos, tanto de extrema direita como de esquerda e nesse o descontento do movimento de massas não tem sido passivo. O rompimento dos velhos regimes foram abrindo caminho para o avanço eleitoral das direitas de Macri na Argentina, Piñera no Chile, Trump nos Estados Unidos ou Temer que por vias antidemocráticas marcou sua chegada ao poder, mas Temer não apareceu do nada, era o vice-presidente de Dilma. Estes exemplos eleitorais ressuscitam um argumento dos velhos aparatos políticos que para esconder seus fracassos falam de um “Giro à direita”, o que significa isso? É colocar a responsabilidade da situação das massas, em nossa própria classe, quando foram estas direções políticas as responsáveis de contrarreformas e ir estreitando as margens democráticas entre a corrupção e a adaptação. Estas expressões eleitorais não andaram por um caminho solitário, se encontraram também com a resposta da mobilização: No Oriente Médio a Primavera Árabe foi acabando com antigos regimes, na Europa as e os indignados da Espanha, os Occupy Wall Street nos Estados Unidos, que tiveram posteriormente sua expressão política em fenômenos como o Podemos na Espanha ou a campanha de Sanders, que embora não expressam posições de uma alternativa socialista, refletem a busca de um setor das massas em novas expressões políticas. O correlato em nosso país é que as lutas estudantis foram construindo a Frente Ampla. A pergunta então é: Pode ser proposta uma política feminista anticapitalista nesses processos, para disputar uma saída revolucionária?

Dizemos tudo isso para colocar na mesa que nossa caracterização da situação mundial é de polarização, já que não podemos analisar a ascensão de Trump, sem um Sanders, muito menos separado das enormes mobilizações a nível mundial que encabeçou o movimento feminista e que hoje a semente da greve de 8 de março. Não podemos deixar de analisar a Polônia, onde a crise fez o governo implementar um ajuste no sistema de saúde que revogava o direito ao aborto e foi a força da mobilização do movimento feminista polaco que o deteve. Não podemos analisar um Macri sem a onda verde que transcendeu fronteiras na luta pelos direitos reprodutivos, nem a paralização de mulheres no 8 de março de 2017 que sacudiu a Argentina, nem a enorme luta que as e os trabalhadores estão travando contra as medidas de ajuste e as demissões massivas. Por outro lado a aparição do neofascista Bolsonaro no Brasil, não cresceu das árvores, foi se alimentando das medidas neoliberais e corruptas feitas pelo PT durante 3 governos e meio que foram em detrimento da qualidade de vida da classe trabalhadora o que deu espaço para sua aparição e diante disso foram as mulheres que puxaram uma campanha através das redes sociais, juntando 3 milhões de pessoas em 3 dias e que saíram initerruptamente em massa por todo o Brasil, se replicando em distintos países do mundo fazendo ecoar o grito de “Ele Não!”. Falar apenas do surgimento do neofascista, omitindo o fato de que as mobilizações contra ele não cessaram no outro lado, não é apenas negar a realidade, é negar também o potencial emancipador tem que o feminismo carrega e contribui para alimentar esses fenômenos de extrema direita.

A situação mundial está convulsionada. Dizemos tudo isso porque são elementos da realidade que convidam a gerar uma reflexão política para a possibilidade de transformá-la e porque acreditamos na revolução não como utopia senão como justiça e é neste cenário aberto que a tarefa do feminismo anticapitalista é construir em nossa diversidade e diferenças uma saída que coloque no centro os interesses dos 99% para ser proposta de um novo mundo.

Nosso país com suas próprias particularidades entra em sintonia com a dinâmica global, o ciclo de mobilização massiva iniciado em 2006 e 2011 colocou em questionamento as bases neoliberais herdadas da ditadura, expressando uma crise de seus principais exponentes sobre um descontento acumulando nas políticas pactuadas na transição, o retrocesso da Nova Maioria, o surgimento eleitoral da Frente Ampla como uma expressão de buscas por novas alternativas vem encontrando seus limites em sua vertiginosa adaptação e política de continuidade do regime, processo que alimentará a polarização.

A surgimento de novos fenômenos em nosso país é parte dessa polarização global, uma característica em nosso continente é que se combina com o fim do ciclo dos progressismos, marcando a tendência política e programática dessa nova esquerda institucional que decidiu apostar em ser parte da reconfiguração do regime, colocando como seu fim o marco eleitoral e em atuar nos marcos da governabilidade, essa referencia está limitada à adaptação, podendo o atual governo empresarial atual sem marco de oposição e avançar em medidas de precarização.

Destacamos isso, já que existe uma disputa aberta no campo político, o vazio de alternativa que expressa o descontento e a constante ofensiva de agressão contra a sociedade por parte do governo sem uma força política que o contrarie, aumenta a abertura para espectros de ultradireita e também para a possibilidade de articulação política da esquerda feminista anticapitalista, por isso é que seguimos apoiando a necessidade de construção de organizações revolucionárias a partir do feminismo anticapitalista, profundamente democráticas, que estejam a disposição para brigar sem dar trégua para mudar este sistema desde a raiz, porque em síntese enfrentamos um problema político, onde a palarizacao e o atuar na mobilização de setores de massa não encontram alternativa favorável para seus interesses, aquela potencialidade é sobre a qual acreditamos que é preciso desenvolver um programa articulador que se disponha a ser uma alternativa de ruptura e de proposta para o presente.

Com tudo isso é que nos parece reducionista ver o atual movimento feminista de nível mundial apenas como espontâneo que responde uma violência específica. Defendemos que é uma resposta daquelas que vivem de maneira mais dura no espaço assignado aos trabalhos reprodutivos e de cuidar da dimensão do capitalismo e sua crise. É por isso que o feminismo Anticapitalista pode sobrepor as novas expressões políticas que mencionamos anteriormente e ser proposta coerente para este século. A partir disso lançamos alguns fatores que sabemos que estão associados mas que esboçaremos em unidade para poder analisá-los com maior profundidade.

1) É Internacional e Internacionalista: Internacional porque está se desenvolvendo (com distintos níveis) em vários países do mundo e internacionalista, já que desde então, manifestações massivas de solidariedade em diversos países foram construídas por organizações feministas.

A mobilização mundial com a ascensão de Trump, organizou pela primeira vez na historia uma resposta generalizada em vários países do mundo contra um discurso abertamente misógino, empresarial e xenófobo. A greve internacional de mulheres que vem sendo convocada desde 2017 a cada 8 de março tem seu epicentro no centro do imperialismo e foi se espalhando com mais força em outros países, e neste ano a Espanha foi a vanguarda do processo. O exemplo mais massivo e recente foi a votação do Senado Argentina da IVE, que recebeu solidariedade em mais de 70 países do mundo (muitos no qual o abroto é legal) e tem sido impulso da formação de campanhas incipientes pelo direito ao abordo em distintos países da América Latina e a solidariedade internacional contra o neofascista Bolsonaro se espalhou pelo mundo. Por tanto, essas expressões de solidariedade não são apenas um fenômeno espontâneo de uma resposta global, é também a semente constitutiva e/ou de consolidação das organizações feministas em seus respectivos países.

2) Tem um potencial Radial e Anticapitalista: Porque é uma resposta direta para a forma de produção e reprodução do sistema, é aí onde reside o conjunto de demandas que hoje articulam o movimento feminista, aparecem consignas que vão questionando o modo no que se reproduz a sociedade e que não podem ser resolvidas no marco do sistema capitalista: “Nós parimos, nós decidimos”, “Si nossas vidas não valem reproduzam sem nós”, “Nem uma a menos, nos queremos vivas e livres”, “Contra a precarização da vida”, “Por todos nossos direitos”. Entre outras.

3) Sua solidez e capacidade de articulação: Do exposto, as razões pelo qual hoje o feminismo socialista constitui um potencial para articular e mobilizar em seu conjunto as demandas da diversidade dos 99%, porque aquela semente anticapitalista representa também suas próprias necessidades motorizando milhões de mulheres e homens em nível mundial.

Desde Juntas e na Esquerda e o Movimento Anticapitalista (Chile) no Anticapitalistas em Rede – IV Internacional apresentamos tudo isso para contribuir à caracterização , porque sabemos que é umf ator fundamental para uma política correta frente aos 99%. Nisso a criatividade das e dos revolucionários para enfrentar o presente está apresentada e se torna urgente em tempos onde a política da medida do possível é a receita permanente. Acreditamos que é tempo de avançar em nossa diversidade, tocando em frente nossos acordos políticos sobre nossas legítimas e necessárias diferenças, para que seja semente de nossa ação política, não apenas porque é possível, é porque é necessário.

Maura Gálvez-Bernabé
Juntas e na Esquerda/Movimento Anticapialista – Chile
Anticapitalistas Em Rede – IV Internacional

[i] Professora de História da Ásia Meridional e Diretora de Estudos Globais da Universidade de Purdue. É autora de The Sentinels of Culture: Class, Education e Colonial Intellectual in Bengal, ativista da justiça palestina. Escreve extensamente sobre a teoria marxista, gênero e política islamofóbica.
[ii] https://marxismocritico.com/2018/09/18/que-es-la-teoria-de-la-reproduccion-social/
[iii] https://marxismocritico.com/2018/09/18/que-es-la-teoria-de-la-reproduccion-social/
[iv] https://vientosur.info/spip.php?article12231
[v] http://www.sinpermiso.info/textos/guerra-comercial-y-depresion