Por Sheraz Mel
A guerra mais longa da história dos Estados Unidos culminou no chamado acordo de paz, cinicamente intitulado “Acordo para levar a paz ao Afeganistão entre o Emirado Islâmico do Afeganistão, que não é reconhecido pelos EUA como um Estado, mas como Talibã, e os Estados Unidos da América” em fevereiro do ano passado. Em vez disso, foi um instrumento de rendição do poderoso EUA por meio do qual as forças desta e da OTAN (exceto a Turquia) deveriam se retirar do Afeganistão em cerca de um ano. Joe Biden escolheu 11 de setembro de 2021 como sua data de aposentadoria, em uma manobra para esconder seu desespero e ligá-lo emocionalmente aos eventos de 20 anos atrás. Os americanos covardemente e repentinamente abandonaram a importante Base Aérea de Bagram, peça central da defesa do Afeganistão. Isso, junto com os rápidos avanços do Talibã na região, lança possibilidade de outra guerra civil. Após 42 anos de guerras e agressões imperialistas, o Afeganistão entrou em um novo “Grande Jogo”.
Em 1979, seis meses antes das forças soviéticas entrarem no Afeganistão, a CIA abriu campos de treinamento terroristas no Paquistão para a operação secreta “Ciclone”. Começaram a realizar ataques de guerrilha sangrentos contra a Revolução de Saur. O imperialismo estadunidense, com o apoio de Israel, Paquistão, Reino da Arábia Saudita, Irã e China, orquestrou uma guerra indireta. Os EUA queriam atrair os soviéticos ao Afeganistão para vingar sua derrocada no Vietnã. A URSS entrou no Afeganistão devido a problemas subjetivos, condições objetivas e com base em análises incorretas. Os Estados Unidos, junto a dezenas de países membros da OTAN, começaram a acumular dólares e armas para a guerra no Afeganistão. Os insurgentes reacionários foram apoiados e rotulados como Mujahidin islâmicos. Guerreiros fundamentalistas de todo o mundo, especialmente do Oriente Médio, se reuniram em ambos os lados da Linha Durand que divide o Paquistão e o Afeganistão. A jihad de sete dólares foi criada e as bases foram estabelecidas para o grupo terrorista internacionalmente famoso Al-Qaeda. Os Estados Unidos usaram o termo milenar “Jihad” contra o governo revolucionário progressista do Afeganistão. Os Bin Ladens eram amigos políticos e familiares da dinastia Bush. O jovem Osama Bin Laden foi nomeado chefe desse grupo em Peshawar, Paquistão, com a ajuda do chefe da inteligência saudita, Príncipe Turki al Faisal. A participação de árabes ricos e outros, como Ayman al-Zawahiri, tinha por objetivo tornar esta guerra atraente, respeitável e sagrada. Redes de cultivo, processamento e tráfico de drogas foram estabelecidas para financiar a guerra. Essas empresas duvidosas ainda geram bilhões de dólares a cada ano e são dominadas até hoje por grupos religiosos fundamentalistas e pela CIA. Além do interesse mútuo em prevenir transformações e revoluções sociais, esse dinheiro sujo manteve os imperialistas e fundamentalistas aliados contra as massas tendo as drogas como oxigênio de suas atividades terroristas. Com isso, os Estados Unidos e seus aliados criaram um pântano apenas para se afundar com sua arrogância. Em 2001, acompanhados pela parceira Grã-Bretanha, invadiram o Afeganistão. Depois de gastar U$2.400.000.000, o que é 8 vezes a economia total do Paquistão, e com cerca de 2.500 soldados mortos, os Estados Unidos agora estão fugindo da derrota. A maior potência militar da história do mundo saiu correndo da base de Bagram e nem mesmo o comandante afegão da base foi informado. O caos e a derrota inevitavelmente levaram a desmoralização entre o Exército Nacional Afegão e o Talibã avançou preenchendo o vazio deixado pelos estadunidenses. Mas este não é o fim da guerra.
A ordem imperialista mundial em declínio
Após a queda do Muro de Berlim e a degeneração e colapso da URSS, o capitalismo estava exultante e um mundo unipolar estava se aproximando. Alegaram euforicamente que era o “fim da história”. Na década de 1990, embriagados com o triunfo e inspirados pela ideologia neoliberal, o imperialismo norte-americano desencadeou ataques aéreos, invasões, mercenários, guerras indiretas, bullying, destruição na Europa Oriental, Iraque, Afeganistão e vários outros países. E agora o presidente dos Estados Unidos, Biden, tem que admitir que “a economia em gotas nunca funcionou”. Sentindo-se invencíveis, os Estados Unidos, a OTAN e seus aliados devastaram o Afeganistão, Iraque, Líbia, Iêmen, todo o Oriente Médio e grupos terroristas como o ISIS e a frente de Al-Nusra destruíram civilizações antigas. Com a queda da URSS, as corporações ianques estavam ansiosas para explorar os recursos naturais e os mercados da Rússia e das repúblicas da Ásia Central. A gigante petrolífera norte-americana Unocal foi premiada com esse projeto. A Unocal formou um consórcio com a Delta Oil do Rei saudita Abdullah e a Turkman Gazprom do Turcomenistão. Para conseguir, o Talibã confiou no Afeganistão com a ajuda do Paquistão. O plano era construir um oleoduto desde o Turcomenistão, passando por Herat e Kandahar, no Afeganistão, até o Sul da Ásia e o Estreito de Ormuz. Uma linha férrea e uma rodovia também foram planejadas ao longo do percurso. Isso atenderia à demanda por petróleo do Paquistão, Índia e do mercado mundial, enquanto a rede de transporte tornaria os mercados da Ásia Central acessíveis. Com dólares americanos, riais sauditas e a influência do Paquistão, o Talibã chegou ao poder em Cabul. No entanto, interesses conflitantes de Estado e poderes beligerantes causaram derramamento de sangue, caos incessantes e este projeto nunca foi capaz de se materializar.
Nacionalistas liberais e a esquerda no Afeganistão
Após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, o presidente Bush acusou sua própria criação, a Al-Qaeda, e iniciou a agressão contra o Afeganistão em outubro. Para justificar o derramamento de sangue, foram criados objetivos como a reconstrução do país, os direitos humanos, o fim do fundamentalismo e o estabelecimento da democracia liberal no Afeganistão, enquanto os reais motivos, além da brutal exibição do poder imperialista, era explorar a riqueza mineral afegã, incluindo lítio e urânio, dinheiro da droga para financiar operações da CIA e guerras por procuração em todo o mundo e presença estratégica na região para combater a China e o Irã. Nacionalistas liberais no Paquistão e no Afeganistão acreditaram cegamente nos imperialistas e seguiram sua linha. Esses liberais acreditavam que os Estados Unidos eliminariam o fundamentalismo da região, entregaria a eles um Afeganistão desenvolvido, democrático e livraria da opressão e da privação nacional. Nos últimos 20 anos, uma nova geração cresceu, mas esses liberais ainda não se organizaram no Afeganistão. Ignorando a organização e a construção de partidos no Afeganistão, no típico estilo do terceiro mundo, confiaram em cultos exagerados de personalidade e desperdiçaram esses anos preciosos. O mesmo aconteceu com a esquerda no Afeganistão, que tem suas raízes e contatos em todas as cidades e aldeias do país. Poderiam ter formado uma frente única para criar uma força política que pudesse defender as massas afegãs das forças das trevas. Em vez disso, preferiram trabalhar como conselheiros e assistentes em ministérios do governo. Nesse vácuo político, o Movimento Pashtun Tahafuz (PTM) se levantou e conquistou muitos seguidores e apoio entre os jovens. Mas sua liderança não construiu nenhuma estrutura organizacional e contou apenas com o ímpeto do movimento. Ideias contraditórias foram expressas no movimento. Agora, uma facção do movimento, junto a personalidades liberais de esquerda, está prestes a formar um novo partido para a política tradicional. Isso enfraqueceu o movimento. Salvo qualquer declaração de compromisso, o movimento silencia sobre a prisão injusta e inconstitucional de um de seus líderes, o deputado Ali Wazir. Apesar de ter a capacidade de manter a paz na região, principalmente nos dois lados da Linha Durand, o PTM está prestes a perder esta oportunidade de ouro. Um rude despertar aguardava os liberais quando o imperialismo dos EUA permitiu que o Talibã avançasse. O governo afegão foi humilhado por ser excluído das negociações, enquanto o Talibã foi tratado com extraordinária reverência. No calor das batalhas, os pedidos de apoio aéreo ou reforços do exército afegão foram protelados ou completamente negados. Antes da invasão dos Estados Unidos em 2001, o Talibã era odiado pelas massas e estava muito perto de ser derrubado pelo próprio povo. Após 20 anos, o imperialismo dos EUA está fazendo todo o possível para impô-los novamente à sociedade. No Vietnã, Iraque, na Síria e além, os imperialistas sempre abandonaram seus aliados e fugiram. Aqueles que não podem aprender com a história estão condenados a repeti-la.
A derrota do imperialismo Estadunidense e da OTAN
Em 17 de outubro de 2001, a maior potência militar e seus aliados invadiu o país mais primitivo dominado por uma milícia desorganizada. No Afeganistão, a Aliança do Norte apoiada pela Rússia e o Irã, ex-senhores da guerra do dólar mujahidin, como Rasheed Dostum, Toran Ismail, Rasool Sayyaf e outros se juntaram a seus novos mestres. Algumas das gangues armadas do Talibã se espalharam pelo país. Os líderes e um grande número de suas tropas cruzaram a Linha Durand para seus refúgios seguros no Paquistão, enquanto a Al-Qaeda e outros grupos terroristas se escondiam nas montanhas. Os EUA com seus B-52s bombardearam as áreas controladas pelo Talibã, mas não conseguiram atingir nenhum alvo importante ou ganhos militares substanciais. Em 17 de dezembro de 2002, o governo do Talibã caiu e Hamid Karzai foi nomeado líder interino pelo Jirga (Conselho) na conferência de Bonn e eleito presidente nas eleições de 2004. Em meados do Século 19, os britânicos coroaram Shah Shuja como um rei fantoche em Cabul. Os soviéticos fizeram de Babrak Karmal o chefe do governo afegão cercado por seus tanques e caças. Hamid Karzai não era diferente. Mas o Afeganistão é o cemitério dos três impérios. No entanto, os dois últimos impérios não foram derrotados apenas no campo de batalha. É na crise de seus sistemas que devemos compreender.
Após a retirada da URSS, o governo revolucionário afegão permaneceu no poder por mais 4 anos, apesar dos ataques das forças jihadistas (incluindo a Al-Qaeda) com apoio militar do Paquistão. Em 1988, os jihadistas lançaram uma ofensiva total contra Khost e Jalalabad, que foi repelida pelo exército revolucionário, especialmente unidades femininas, com tal ferocidade que os fundamentalistas e seus senhores ainda se lembram dela. Houve outros fatores responsáveis pela queda da revolução afegã, a maioria deles internos.
Quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão, primeiro na década de 1990 por meio do Talibã e depois diretamente em 2001, aproveitaram a onda de uma recuperação relativa na economia capitalista neoliberal. No entanto, a queda do mercado de ações e da moeda das economias do Sudeste Asiático em 1997 reduziu os chamados tigres asiáticos a meros gatos. Para se beneficiar da barata mão de obra qualificada chinesa, matérias primas baratas e tarifas baixas, indústria e tecnologia foram transferidas para a China em grande escala para manter as taxas de lucro. Após um breve intervalo, a China e suas commodities se tornaram um problema para os Estados Unidos e a Europa. O Ocidente dependia da especulação para manter seus lucros, o que resultou no colapso de 2008. Os governos dos Estados Unidos e do Ocidente resgataram bancos e corporações com bilhões de dólares e benefícios fiscais, mas isso dificilmente recuperou a economia. A crise causou enormes défices orçamentários e dívidas. Os Estados Unidos são a nação mais endividada do mundo. Não há dinheiro para infraestrutura, que precisa de 3 trilhões de dólares; os salários reais dos trabalhadores americanos estão caindo; há um nível recorde de desemprego e as pessoas não conseguem pagar as contas da casa, etc.; milhões estão abaixo da linha oficial de pobreza. A juventude cresceu em movimentos como BLM [Vidas Negras Importam], as ondas da pandemia da Covid-19 não apenas paralisaram as cadeias de abastecimento internacionais, mas também expuseram a fragilidade do sistema econômico e de saúde dos EUA. Essas crises históricas primeiro forçaram Barak Obama a definir um cronograma para a retirada do Afeganistão, seguido pelo acordo de Trump com o Talibã e o prazo para a retirada. O presidente Biden disse que os soldados foram ao Afeganistão pela primeira vez em 2001 e agora seus filhos estão lutando nessa guerra. Seus netos serão os próximos? E apoiou os planos de aposentadoria das administrações anteriores.
Um dos principais motivos da derrota do imperialismo ianque e de seus aliados da OTAN foi a disseminação do inimigo pelas vastas montanhas, áreas selvagens e a população. Os Estados Unidos bombardearam civis, mataram e mutilaram mulheres e crianças, não combatentes. Isso enfureceu a população local contra os invasores estrangeiros, enquanto o Talibã encontrou santuários em ambos os lados da Linha Durand com a conivência de políticos paquistaneses. Tudo isso ajudou a guerra de guerrilha do Talibã. Por outro lado, havia contradições entre os imperialistas, com interesses conflitantes entre diferentes Estados e departamentos, prolongando assim a guerra e causando fadiga e ansiedade. Os empreiteiros americanos e o complexo industrial militar queriam que a guerra continuasse, enquanto os interesses de mineração não conseguiam extrair recursos minerais no ambiente de guerra. Da mesma forma, o Pentágono e a administração da Casa Branca perseguiram objetivos conflitantes. Está registrado que muitos funcionários da CIA, diplomatas e militares estiveram envolvidos no tráfico de drogas. Isso exigia que a guerra continuasse. Todos os países vizinhos se sentiram ameaçados pela presença de tropas americanas. Esses Estados apoiaram o Talibã e forneceram inteligência e apoio logístico, armaram-nos e deram-lhes apoio moral. O Talibã conseguiu estabelecer relações diplomáticas com todas as nações vizinhas. Assim, a maior potência militar da história no país mais pobre foi derrotada e humilhada.
O Talibã irá capturar Cabul?
O presidente do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos, general Mark Milley, declarou que, após a retirada do país, o Talibã terá vantagem estratégica. De acordo com relatórios da inteligência dos EUA, o Talibã pode assumir o controle de Cabul em seis meses. A mídia internacional também afirma que o Talibã assumirá o controle do país em breve. No momento em que eles mapeiam os territórios controlados pelo Talibã e pelo governo, o Talibã avançou ainda mais e o mapa se torna irrelevante. De acordo com o Talibã, controlam 85% do país, mas 50% das terras do Afeganistão são montanhas inabitáveis. Existem vastos desertos no sudoeste que se estendem até Herat, a maior parte da terra é um planalto e é escassamente povoada; o sudeste é de planícies férteis e povoadas. O fato é que das 34 províncias (wilayat), o Talibã não capturou uma única capital. Em 1994, o Talibã capturou Kandahar logo após sua ascensão. E então avançaram em direção a Cabul de duas direções: na frente norte, foram repelidos após pesadas perdas em Mazar-e-Sharif; na frente oriental, Robert Oakley estava negociando com os senhores da guerra e chegaram aos portões de Cabul sem nenhuma resistência significativa. Mesmo depois de capturar Cabul, o Talibã nunca foi capaz de avançar ao norte. Desta vez, eles utilizarão uma estratégia diferente. Em vez de capturar Kandahar, estão consolidando suas posições nas quatro regiões do país, incluindo Islam Qila, perto de Herat, o corredor Wakhan na fronteira com a China, Tadjiquistão e Usbequistão, a passagem da fronteira de Sher Khan Bandar e a passagem da fronteira com o Paquistão em Spin Boldak, perto de Kandahar. Estão lutando pelo controle de cidades e áreas importantes. Sob o pretexto de um diálogo entre afegãos, o Talibã se ofereceu para falar com o governo afegão dentro de um mês. De acordo com especialistas, o Talibã quer aproveitar a vantagem psicológica após a retirada dos EUA e capturar objetivos estratégicos importantes. Dentro de um mês, oferecerão ao governo afegão um “Plano de Paz” para renunciar, transferir o poder e declarar anistia caso o atual governo renuncie. Por outro lado, o governo afegão está permitindo que o Talibã capture áreas remotas, mais do que o Talibã é capaz de manter e defender áreas povoadas quando necessário. Com exceção de Spin Boldak, não há nenhuma área sob controle do Talibã que o governo não consiga retomar em um curto espaço de tempo. Apenas uma unidade do Talibã tem capacidade para lutar na linha de frente. Depois de capturar um local, o entrega para o Talibã armado comum e segue para outra frente. O perigo real de derrota ou desintegração do governo afegão deriva da possibilidade de que senhores da guerra como Gulbuddin Hekmatyar e outros passem para o lado do Talibã em momentos críticos. Por outro lado, Abdullah Abdullah, líder da Aliança do Norte e chefe do Conselho de Paz do Afeganistão, pode colaborar com o Talibã para dividir o poder. Isso quase certamente levará ao isolamento e à queda do governo.
Após a retirada estadunidense, há um novo sentimento no povo afegão e até mesmo entre os apoiadores do Talibã de forte oposição aos afegãos que lutam entre si. Em outras palavras, há oposição à captura do Talibã por Cabul por meio da guerra. Por causa disso, o Talibã está perdendo rapidamente o apoio que antes tinha para lutar contra invasores estrangeiros. As forças do governo afegão não podem mais ser consideradas aliadas de uma potência imperialista. A maioria dos afegãos vê o Exército Nacional como a única força para defendê-los de seus vizinhos invasores e de seus representantes. O Exército Nacional Afegão tem conduzido todas as operações no fronte desde 2017, enquanto as forças imperialistas de ocupação se limitaram a ataques aéreos, alguns fortes e a base de Bagram. As causas da guerra alimentam ainda mais esse sentimento anti-guerra. Devido ao tratamento desumano de civis, especialmente mulheres, no último regime do Talibã, o governo afegão começou a armar cidadãos, incluindo mulheres, para se defenderem. Senhores da guerra e antigos mujahidin do governo afegão, como Abdul Rasool Sayyaf, o açougueiro Hikmatyar de Cabul, o mulá Salam Rockety etc., interromperam esse processo à força. Temem que o povo, uma vez armado, possa enfrentar essas feras sanguinárias que foram protegidas pelo imperialismo norte-americano na mesma democracia e parlamento, antes mesmo de lutar contra o Talibã. O governo afegão é composto por indivíduos, grupos, partidos, senhores da guerra e milícias de várias origens. Hamid Karzai e Ashraf Ghani tentam se apresentar como a continuação do governo do Dr. Najibullah (um presidente de esquerda que foi executado pelo Talibã). Mais da metade do governo de Ashraf Ghani é formado por ex-membros da Aliança do Norte. A Aliança do Norte é formada pelos chamados ex-Mujahidin e remanescentes da facção Parchamite do PDPA (Partido Khalaq), chefiada por Abdullah Abdullah. Outro senhor da guerra usbeque é o analfabeto General Rashid Dostum, que era o chefe do Estado-Maior do Exército do presidente Najibullah. Foi nomeado após Najibullah ter assassinado o general Asif Shor e o General Jaffar Sartir. Dostum reside principalmente na Turquia e possui propriedades lá, é um confidente de Erdogan e protege os interesses turcos no Afeganistão; ameaçou o presidente Ghani de que, se suas exigências não forem atendidas, separará as áreas do Usbeque, Aimaqui e do Turcomenistão no Afeganistão para criar o Turquestão. Erdogan se lançou neste grande jogo usando Dostum como seu procurador. As forças turcas se recusaram a deixar o Afeganistão mesmo após a retirada da OTAN. Cerca de 500 soldados turcos ocuparam importantes instalações estratégicas sob o pretexto de vigiar o aeroporto de Cabul. Erdogan, junto aos governantes do Paquistão, está negociando a estrutura de poder de um futuro governo afegão. Em público, em sua hipocrisia de marca registrada, Erdogan aconselha o Talibã a evitar a guerra. Cada milícia e grupo paramilitar no Afeganistão é representante de um Estado estrangeiro. Os interesses econômicos e estatais dessas potências desempenham um papel crucial na determinação do papel de cada uma. A intervenção desses interesses conflitantes muitas vezes complica a situação. Paquistão, Rússia e Irã desempenharam um papel fundamental em ajudar o Talibã a alcançar sua posição dominante atual, muito dependerá de como esses poderes e seus aliados agirão no futuro. O Paquistão, sob sua política de “profundidade estratégica”, tem recrutado senhores da guerra como Hikmatyar e Mujadadi desde os anos 1970 e os usa para seus interesses de Estado e governos subordinados em Cabul. O Paquistão ajudou a criar o dólar mujahidin, mas agora as coisas são um pouco diferentes. O profundo Estado do Paquistão organizou e apoiou o Talibã, fornecendo-lhes santuários e instalações médicas e de treinamento para lutar não apenas contra a invasão americana, mas também contra os representantes indianos. Mas, diferente do passado, não possuir um suprimento de dólares americanos e um governo afegão relativamente estável tornou as coisas difíceis; por outro lado, o regime semi-fascista de Islamabad é um aliado dependente dos Estados Unidos. Não pode permitir um governo Talibã em Cabul ou uma grande e prolongada guerra no Afeganistão. Na política interna e externa, as políticas de Estado do Paquistão vão em direções opostas. Os avanços do Talibã estão colocando mais pressão sobre o governo Imran Khan do que sobre Ashraf Ghani. Essa é a razão pela qual Imran Khan está se distanciando da Junta Militar e elogiando Xi Jinping.
O Afeganistão tem status de observador na Organização de Cooperação da SCO de Xangai, que inclui China, Rússia e nações da Ásia Central. Estes veem o Afeganistão como um país estrategicamente importante no meio do Sul da Ásia, Ásia Central e Europa. A China vem tentando ganhar influência no Afeganistão há muito tempo. Os chineses querem incluir o Afeganistão no Cinturão do Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC) e nos projetos de estradas que conectarão Peshawar a Cabul e de lá à Rota da Seda na Ásia Central. Após a tomada do corredor de Wakhan pelo Talibã, a China teme a expansão do Movimento Islâmico do Turquestão Oriental (movimento secessionista fundamentalista religioso) de muçulmanos uigures de Xinjiang. Recentemente, uma delegação do Talibã chamou a China de nação amiga e afirmou que resolveria as questões por meio de negociações com o governo afegão. A Rússia convocou duas reuniões da SCO em Dushanbe e Tashkent para discutir a situação após a retirada dos EUA do Afeganistão. O Afeganistão estava na agenda da reunião especial dos ministros das Relações Exteriores da SCO. A Rússia está preocupada com o crescimento do Movimento Islâmico do Turquestão Oriental e da seção do ISIS Khurasan nas fronteiras do Afeganistão. Esses grupos fundamentalistas podem se infiltrar nos Estados contíguos à Rússia e realizar atos terroristas.
Conforme explicado acima, na década de 1990, os Estados Unidos podiam atuar como policiais do mundo e controlar nações rebeldes. A crise da economia capitalista e o fracasso das políticas neoliberais enfraqueceram o poder do imperialismo norte-americano. Por outro lado, a ascensão e estabilidade da China permitiram que esta enfrentasse os Estados Unidos na Ásia. Enquanto isso, o capitalismo gangster sob uma ditadura na Rússia estabilizou relativamente o Estado, levando a uma política externa mais agressiva. Como resultado, a China e a Rússia, com seus Estados clientes do Pacífico ao Sul da Ásia, e da Ásia Central à Europa Oriental, África, América Latina e Oriente Médio, desafiaram a ordem mundial imperialista unipolar. A influência americana diminuiu e teve que se concentrar em seus problemas internos. Na semana passada, o presidente Biden e o primeiro-ministro iraquiano Kadhimi selaram um acordo para encerrar a missão de combate dos EUA no Iraque.
As condições objetivas e subjetivas que o Talibã tinha a seu favor na década de 1990, após a captura de Cabul, mudaram drasticamente. No caso extraordinário de o Talibã assumir o controle do Afeganistão, não possuem programa para resolver os problemas do povo afegão e desenvolver o país. Não têm planos para resolver as misérias do capitalismo, como pobreza, privação, desemprego, analfabetismo e a falta de serviços de saúde. Dependem de uma forma muito bárbara e reacionária de capitalismo para sua vida social e econômica. Ainda assim, a ascensão do Talibã ao poder empurrará o infeliz Afeganistão para um abismo de guerra civil prolongada e derramamento de sangue. O imperialismo dos EUA está mudando sua base do Afeganistão para o Golfo. Para o benefício da indústria de guerra e para vingar a derrota humilhante, continuarão a atacar com mísseis de cruzeiro e drones. Isso será alarmante não apenas para o Talibã, mas também para o Paquistão e o Irã. Para sabotar o projeto China Belt and Road e assediar a Rússia, os EUA usarão equipes terroristas como ISIS Khurasan, o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, Tehreek Talibã, Paquistão e outros, e esta região será mais uma vez devastada pelo terrorismo.
A paz e o progresso no Afeganistão dependem de uma transformação revolucionária na região. Mas, para impedir os avanços imediatos do Talibã e possível derramamento de sangue e barbárie, elementos progressistas, organizações estudantis e trabalhadores precisam de um plano de ação imediato, mesmo provisório. Adiar a luta contra o fascismo do Talibã até uma revolução seria extremamente irresponsável. Da mesma forma, apesar de toda a sua corrupção e caráter impopular, o governo afegão e o Talibã não podem ser vistos da mesma maneira. Portanto, excluindo as forças responsáveis pela destruição do Afeganistão, a necessidade do momento é uma estratégia conjunta imediata. Em primeiro lugar, é necessária uma solidariedade internacional da classe trabalhadora para pressionar os Estados envolvidos na destruição do Afeganistão (em particular os assessores e instigadores do Talibã), por meio de manifestações e movimentos. E se o Talibã assumir o poder, usar solidariedade em oposição a possíveis massacres. Em vez de senhores da guerra e ex-mujahidin, o governo afegão deveria armar todo o povo, organizá-lo e mobilizá-lo para lutar contra o Talibã. Para fazer isso, uma milícia popular em massa deve ser formada o mais rápido possível. Em uma situação de emergência, uma força internacional de manutenção da paz pode intervir com apoio aéreo e terrestre para impedir o avanço do Talibã. Com a condição de que as operações dessa força estejam alinhadas com os interesses e aspirações do povo afegão. Além disso, a OTAN, o Irã e o Paquistão não deveriam fazer parte. Este processo irá expor os Estados que são oficialmente contrários ao Talibã, mas agem de forma diferente. Os plenos direitos de organização e reunião de todas as organizações e partidos políticos no Afeganistão, exceto aqueles com inclinações religiosas fundamentalistas e fascistas, devem ser garantidos. Isso poderia resultar em um movimento para unir todas as tendências anti-Talibã progressistas na região. Mais importante ainda, as oportunidades abertas pela retirada e fracasso do capitalismo neoliberal devem ser usadas para construir forças revolucionárias. As massas trabalhadoras vivem na miséria da pobreza e privação. Os movimentos de massa estão crescendo novamente, desta vez em bases mais radicais. Sob uma liderança revolucionária, é preciso unidade para eliminar o sistema explorador que é a verdadeira causa e fonte do horror imperialista e do terror fundamentalista.