XIII Congresso do MST: intervenção de Alejandro Bodart sobre o Ponto Internacional

Intervenção de abertura

Camaradas, nós da CEI da LIS, para contribuir com uma série de congressos que tivemos neste momento (recentemente houve o congresso dos camaradas do Paquistão, agora vamos a um congresso no Quênia e este do MST argentino), apresentamos um documento que está no Boletim nº 17 [1], com o objetivo de facilitar o debate e incentivar que a questão internacional esteja em nos nossos congressos. Ainda mais numa situação em que a questão nacional, particularmente aqui na Argentina, nos aprisiona há vários meses.

Demos um título a este material, que é Socialismo ou Barbárie. Não se pretende que seja mais do mesmo, porque nós usamos muitas vezes esta consigna, mas para nós tem uma grande importância neste momento, porque é um prognóstico cada vez mais atual e achamos que é importante começar por aí. Estamos no momento em que a crise do capitalismo está a um nível tal que já existem elementos de barbárie e tudo indica que, se não lhe pusermos um freio, continuará avançando. É importante focar que estamos num momento importante, em que este dilema é cada vez mais presente, mais atual, e é importante trazer este debate sobre a fase atual em que estamos e o momento que vivemos.

A crise econômica, que deu um salto extraordinário em 2008 e é a maior em pelo menos 70 anos, e não enfraqueceu. Pelo contrário, continuou e aprofundou-se. De fato, se fizermos uma análise econômica a curto prazo, creio que as perspectivas para este ano, para o próximo ano, são de que a crise não vai ter uma perspetiva positiva. Todos os economistas, todas as organizações internacionais, sugerem que vai continuar a aprofundar-se e portanto as perspectivas são más para a economia mundial. E todos nós sabemos o que isso significa para os setores populares: uma situação de agravamento das dificuldades.

Porque a burguesia, perante esta crise, está arquitetando uma ofensiva brutal para tentar sair da crise à custa de ajustes brutais e estruturar os próprios regimes políticos de que necessita para aplicar estes ajustes. Em muitos países não é possível impor ditaduras, mas a democracia burguesa, tal como a conhecemos em alguns países, não lhes servem mais para avançar com os arrochos. Portanto, estamos vendo mudanças. Estamos vendo setores burgueses apostando em variantes da extrema direita. Embora não possamos falar de fascismo, há elementos claros disso e está ligado à crise.

A situação de fome e de miséria está provocando fenômenos como as migrações em massa que, no caso da Europa, têm um peso tremendo. O desespero para sair dos países semicoloniais até as metrópoles provoca mortes, e aqueles que conseguem chegar vivem numa situação de miséria permanente porque não encontram o futuro que procuravam. Este é também o caso da América Latina em relação aos Estados Unidos.

Estamos assistindo a um ataque brutal à natureza. Estamos numa fase crítica em relação ao modelo de produção e à possibilidade de entrarmos num caminho quase sem retorno em relação às possibilidades de sobrevivência, como resultado da brutalidade do capitalismo. O racismo e as disputas religiosas também só crescem. Onde há progressos na conquista de direitos democráticos para as mulheres, há também uma reação contra essas conquistas. Em muitos lugares, há epidemias causadas justamente pela violação dos limites da natureza e de um modelo de produção que produz cada vez mais catástrofes.

Por isso, é muito importante que definamos claramente algo que para muitos de nós aqui é óbvio, mas que é também uma disputa política, porque se trata de convencer a vanguarda e setores importantes do movimento de massas de que o capitalismo não pode ser reformado e que não há possibilidade de fim das crises se não for pela destruição do capitalismo. E isto, que, volto a insistir, pode ser uma questão óbvia para nós, não é tão óbvia para a vanguarda e para setores do movimento de massas. Portanto, há uma batalha política para convencer que não há perspetiva para a humanidade sem destruir o capitalismo, que não há reforma, que não há capitalismo bom ou humano. E que, portanto, a grande tarefa da humanidade – nós devemos colaborar para acontecer – é a revolução socialista. A crise chegou a tal ponto que o capitalismo não permite sequer reformas mínimas. É quase necessário fazer uma revolução para conseguir as reformas mínimas que noutros tempos os reformistas conseguiram e assim se mantiveram.

É precisamente isto que leva à crise os projetos reformistas em todo o mundo: criam expectativas, mas como não podem dar nada ao movimento de massas quando estão no governo, por causa da fase de crise do capitalismo, entram rapidamente em crise. É isto que muitas vezes abre as portas para a direita: a desilusão com estes projetos. Vimos na Europa com o Syriza e com o Podemos, na América Latina com tudo o que foi o Chavismo, com o que foi Lula, com o próprio kirchnerismo na Argentina: não podem oferecer absolutamente nada ao movimento de massas porque, no quadro da situação atual da crise do capitalismo, não há lugar para reformas. Os reformistas são vítimas disso.

É por isso que este debate é muito importante, para levar à vanguarda. Temos de travar uma luta política para explicar à vanguarda que, se não destruirmos o capitalismo, virá a barbárie, e já há elementos de barbárie; que a batalha é precisamente para evitar a barbárie, para evitar o aparecimento de expressões de extrema direita, e que isso exige uma ruptura definitiva com qualquer perspetiva reformista e avançar para uma perspetiva revolucionária.

Outro elemento importante da fase atual, sem o qual não se pode compreender praticamente nada do que está acontecendo, é que a crise do capitalismo provocou também uma disputa interburguesa entre os velhos imperialismos que estão em crise e os novos imperialismos emergentes. Este é também um elemento importante. Não se pode compreender praticamente nada do que se está a passar, nem dos conflitos que começam a ter lugar a nível internacional, sem compreender que estamos numa fase de uma espécie de nova Guerra Fria, desta vez entre potências imperialistas, que se aprofunda cada vez mais e que pode mesmo conduzir, dentro de algum tempo, a um novo confronto internacional. Porque para além do fato de não podermos fazer um prognóstico fechado sobre isso, temos de saber que, até agora, as disputas de hegemonia entre potências acabaram sempre numa disputa militar. Agora, estamos numa altura em que o poder atômico existente pode mesmo levantar a possibilidade de um novo confronto global poder pôr fim à vida no próprio planeta. É por isso que é importante salientar que nós, revolucionários, somos os únicos que podemos travar esta perspetiva, porque só a revolução socialista pode atuar para impedir que este grande conflito aconteça. É preciso notar que, por exemplo, a guerra na Rússia e na Ucrânia levanta constantemente a possibilidade de que, especialmente a Rússia, que é uma potência nuclear, se for ameaçada, possa atuar nesta área. Esta questão é um debate permanente na Europa.

Ora, para compreender e para nos situarmos politicamente, é importante definir a questão do declínio dos Estados Unidos. Porque os Estados Unidos continuam a ser a potência hegemônica até hoje, mas estão num período muito importante de declínio e isso tem a ver com diferentes fatores que levaram a esta situação. Um deles é que, embora tenham “vendido”, através de uma propaganda muito forte que atingiu a consciência do movimento de massas, que, com a queda da União Soviética e tudo o que aconteceu depois, iriam conseguir semicolonizar esses países, falharam nessa tarefa. Não só não conseguiu semicolonizar a China, a Rússia, como aconteceu o contrário. A restauração capitalista não acabou na semicolonização: acabou na formação de novas potências capitalistas que começaram a disputar o papel hegemônico, sobretudo a China. Também a Rússia, que devemos debater se é uma potência regional, ou internacional, sendo uma potência na região, onde atua como uma potência imperialista.

Outro elemento muito importante é que os EUA perderam a burocracia soviética como um parceiro chave na luta de classes. Embora a restauração tenha sido um triunfo do capitalismo sobre o “socialismo real”, levado a cabo precisamente por toda a política do stalinismo, ao mesmo tempo perdeu-se a burocracia, que desempenhava um papel fundamental na resposta à situação mundial, e isso enfraqueceu o imperialismo e os Estados Unidos. Eu faço sempre uma comparação, que é importante fazer. Imaginem que aqui a burguesia perdeu a burocracia sindical como um ator fundamental para atuar na luta de classes. Porque os avanços da burguesia não são entendidos apenas pelo que a burguesia quer fazer: em muitos casos são entendidos pelo que a política da burocracia permite fazer. Na Argentina estamos num momento em que, se houvesse uma greve geral e um plano de luta, seria difícil que o plano de Milei sobrevivesse. Mas ele avança por causa da cumplicidade da burocracia. Bem, a nível mundial, a burocracia soviética também desempenhou um papel nesse sentido.

Há um debate muito importante na esquerda, em primeiro lugar porque há muitos camaradas que pensam que a China ainda não pode ser definida como imperialista. É um debate que leva a conclusões políticas, porque se não for imperialista e se, a dada altura, houver um confronto entre a OTAN e a China, se um for imperialista e o outro não, isso significa objetivamente que temos de estar do lado da China. Se são dois setores imperialistas, o que acreditamos, nenhum deles é progressista, logo, não temos de apoiar nenhum deles. Isto é transferido para o conflito permanente. Por exemplo, os camaradas do PTS (Fração Trotskista) na Argentina acreditam que é um processo que não foi consumado, o que tem muito a ver com a posição que possuem sobre a Ucrânia e outros lugares.

O mesmo se aplica à guerra na Rússia e na Ucrânia. Não é a mesma coisa se se trata de dois países semi-coloniais ou não imperialistas. O que está a ser debatido na Ucrânia é se há um país imperialista atacando outro. O Partido Obrero (PO Argentino) fazem uma tremenda confusão: dizem que a restauração na Rússia ainda não está completa, mas ao mesmo tempo já desempenha um papel imperialista. Trata-se de um debate a nível internacional e temos de ser muito firmes nesta matéria. Nós, da LIS, contribuímos com um debate importante, a revista que publicamos sobre tudo isto.

Este é um debate que vai para além do campismo. O campismo existe. Mesmo setores da própria burguesia incentivam o campismo, o nacionalismo, setores que vêm do stalinismo. Mas há um debate que vai além disso e que atinge até mesmo as forças do trotskismo, que ainda não conseguimos concordar e que muitas vezes dificulta a unidade de ação nos processos que ocorrem, resultando debates e até mesmo em campos diferentes. Somos categóricos: consideramos que nenhum dos setores, nem as velhas potências – obviamente os Estados Unidos – nem as novas, desempenham qualquer papel progressista e, por conseguinte, temos uma política independente de todas elas.

Tudo isso é importante para a ação, não aos conflitos como o da Ucrânia. É importante atuar, por exemplo, na Nicarágua. Que política temos para a Nicarágua? Temos uma política independente. Nós, socialistas revolucionários, desenvolvemos uma política contra o imperialismo norte-americano, mas também contra o governo da Nicarágua. Não cedemos ao governo nicaraguense, como faz um setor, especialmente no campismo. Temos uma política que está nos fortalecendo em toda a América Central, precisamente porque temos uma política independente do governo da Nicarágua. Criamos uma brigada. Tudo isto nos permitiu fortalecermo-nos, construirmos a nossa seção nicaraguense, começarmos a ter relações e a construirmo-nos na América Central.

Há setores da esquerda que não são claros; não são claros em relação a Cuba, que está num processo de restauração; têm uma política completamente ambígua, muitas vezes não apoiando as mobilizações. Nós, em primeiro lugar, diferenciamo-nos do imperialismo, que está constantemente tentando interferir e tirar partido de todas as crises. Mas também devemos ter uma política que seja independente dos governos que fazem parte deste bloco organizado em torno da China e da Rússia.

No movimento de massas, o ódio aos Estados Unidos, um ódio justo, torna muitas vezes estes debates complexos, porque “o inimigo do meu inimigo” atrai muitas vezes a simpatia. Mas é um debate político que temos de explicar. Também acontece frequentemente que a Rússia é entendida como uma continuação do que foi a URSS. O que acontece na Rússia não tem nada a ver com o que aconteceu na URSS.

Na Ucrânia, tudo isto entrou em contradição. Na nossa opinião, um setor importante da esquerda caiu numa posição unilateral de ver apenas um lado do processo na Ucrânia, quando na realidade se combinaram dois processos. Porque o conflito começou com a invasão da Rússia, uma potência opressora, historicamente opressora dos diferentes povos da região, contra um país semi-colonial. Este fato suscitou, em primeiro lugar, a defesa do direito da Ucrânia à autodeterminação. Mas também se conjuga com o fato de a OTAN ter aproveitado o conflito para se rearmar e reforçar. Utilizou mesmo a invasão da Rússia para o conseguir, até para trazer novos países para a OTAN. E isto era confuso, porque havia camaradas que tinham uma política de só ver este lado e, portanto, não levantar o direito da Ucrânia à autodeterminação, mas resumir-se na disputa contra a OTAN e, assim, excluir a Rússia do papel de potência opressora e imperialista na região.

Claro que também havia correntes como a UIT (Izquierda Socialista da Argentina) ou a LIT (PSTU do Brasil) que ignoravam o fato de a OTAN explorar o conflito e, portanto, só viam um lado do problema: o da autodeterminação. Quando a política deve incorporar os dois elementos para ter uma posição concreta e poder ajudar a construir-se na região.

O grande problema para nós, se é verdade que a alternativa é o socialismo para evitar a barbárie, para avançar na revolução socialista precisamos construir um partido e precisamos nos construir em cada um dos locais onde intervimos e ter políticas para nos construirmos. Muitos camaradas têm uma orientação completamente abstrata, agindo à distância sem tentar intervir e disputar a direção do movimento de massas.

Na Ucrânia há uma luta pelo movimento de massas e quem ceder à Rússia nunca conseguirá construir e conquistar o melhor da vanguarda. Capitula-rá aos nacionalistas. A melhor ajuda para os nacionalistas é não levantar o direito à auto-determinação nesses países. Por outro lado, é entregar o movimento de massas nas mãos dos Zelenski e da OTAN, que se apresentam como os porta-estandartes da defesa dos direitos, quando todos sabemos que tudo o que querem é subjugar a Ucrânia e aprofundar a sua colonização. Mas para se contrapor, para ter autoridade para poder contestar e enfrentar o plano de colonização do imperialismo ocidental, é muito importante ser a vanguarda do direito do povo ucraniano à autodeterminação.

E o mesmo se passa na Rússia. É impossível construir na Rússia capitulando a Putin, que desenvolveu um regime completamente autoritário e ditatorial para apoiar a sua ofensiva e a transformação numa potência em toda a região, e que tem os melhores da vanguarda presos, exilados no estrangeiro ou na clandestinidade porque não podem atuar.

Para nós, a disputa pela direção não é um problema abstrato, intelectual, acadêmico; tem a ver com as disputas concretas que existem em locais concretos. Nós, socialistas revolucionários, nunca conquistaremos o proletariado do Leste Europeu se não tivermos uma política clara de delimitação total do poder opressor desse lugar e, ao mesmo tempo, se não explicarmos ao movimento de massas que a saída não é o Ocidente, não é a OTAN, não são os Estados Unidos.

Esta combinação também tem a ver com a política em relação a Cuba. Nunca nos construiremos sem apoiar a vanguarda que luta e defende a revolução, mas que é crítica da burocracia, se tivermos o preconceito de que se a apoiarmos estamos a fazer o jogo do imperialismo norte-americano, como fazem muitas correntes, mesmo no trotskismo, que não apoiam os processos concretos de luta e não disputam a direção. Este é um debate muito importante. Todas as caracterizações estão ligadas à política e temos de nos armar bem porque são debates concretos com a vanguarda.

Não somos nacionalistas. Temos de deixar claro que a nossa saída não é a divisão em inúmeros países e nacionalidades. Lutamos pela unidade da classe trabalhadora. Lutamos pela Federação Livre das Repúblicas Socialistas em todo o Oriente, no Oriente Média, na África, na Europa, na América Latina. Mas sabemos bem que existem diferentes tipos de nacionalismo. O nacionalismo dos países que oprimem outros povos não é o mesmo que o nacionalismo dos países oprimidos. E é por isso que precisamos de desenvolver políticas em defesa do direito à autodeterminação. E esta é uma política crucial, porque na fase em que estamos a chegar, vamos assistir a muitos processos de subjugação da soberania dos povos. E nós, que não somos nacionalistas, vamos ter de defender esse direito.

Prestem atenção, a Revolução Russa não teria acontecido se Lenin não defendesse o direito à autodeterminação das nacionalidades oprimidas pelo império czarista, defendendo mesmo o direito à separação, que não era a política bolchevique, porque a política bolchevique era a Federação. Mas a política não pode ser imposta pela força das armas, que é o melhor argumento para que o movimento de massas se alie aos nacionalistas de direita. Houve uma revolução graças a esse êxito, e foi um debate muito importante entre os bolcheviques, porque Stalin e outros eram contra. Até Rosa Luxemburgo era contra, porque tinha apenas uma política abstrata de que era preciso ser internacionalista. Mas para fazer a revolução internacional é preciso ganhar o movimento de massas e para ganhar o movimento de massas, como o Programa de Transição também afirma, temos de elevar as exigências do movimento de massas para o conquistar para o internacionalismo, e não entregar o movimento de massas às direções nacionalistas.

Vão surgir novos problemas: o que é que vamos fazer em relação a Taiwan, por exemplo, se a China invadir? Claro que há todo o tipo de argumentos. Quando a revolução chinesa estourou, toda a ala direita fugiu para Taiwan. Havia uma política do próprio governo de Mao para transferir para Taiwan toda a população que, na altura, estava com a burguesia chinesa. Mas muitos anos se passaram desde então, tem ou não o direito à auto-determinação? São debates que devemos fazer, que vão surgir a qualquer momento. São debates que temos aprofundar entre nós para refletir sobre a nossa política sobre este assunto.

Há outro debate, que é o da Palestina. Ao contrário da Ucrânia, existe uma unidade muito grande, não total, mas muito grande, em relação à defesa da causa palestiniana. Mas sobre qual é a saída para a causa palestina, ainda há muitos debates no mundo. Há um debate que estamos travando contra aqueles que há vários anos defendem a solução dos dois Estados, que foi pulverizada pela realidade, mas que permitiu ao sionismo, por exemplo, fortalecer-se através da rendição de Arafat (OLP) e de toda a direção histórica quando aceitaram a política dos dois Estados, que foi acompanhada pelo reconhecimento do Estado sionista.

Atualmente, há outros debates. Agora que esta política falhou, será possível um Estado binacional, um Estado único onde os dois povos vivam juntos? Passou muito tempo desde que o Estado sionista foi criado, há 75 anos. Alguns camaradas argumentam que já passou tanto tempo que a população judaica já se instalou, logo a questão da destruição do Estado sionista deve ser debatida, e talvez devêssemos avançar para um único Estado binacional. São debates que existem entre camaradas que estão tentando encontrar uma saída. Nós não vemos desta forma. Pensamos que não há qualquer possibilidade de paz na região se não for com base na liquidação do Estado sionista e no regresso à situação de 75 anos atrás. É um debate com camaradas com quem temos relações fraternas, porque é um debate lógico, porque a nossa proposta de liquidar o Estado sionista e passar a um Estado palestino único, laico, democrático e socialista também não é fácil.

Há outro debate: será que a saída é a confraternização das classes trabalhadoras na Palestina e em Israel? Há uma classe operária forte em Israel. Agora, não vemos que essa confraternização seja possível se não houver uma derrota do Estado de Israel, porque hoje essa classe trabalhadora está contaminada até ao osso pela política do sionismo, que teve uma política para fazer com que a população seguisse o sionismo, que foi dar-lhes os territórios, as casas e tudo o que pertencia ao povo palestinno, incorporar toda a população no exército para que todos, de uma forma ou de outra, participassem também na limpeza étnica, na tomada dos territórios e no próprio genocídio.

Por conseguinte, se não há uma derrota categórica do sionismo que abra uma outra perspetiva, é muito complexa: o que é que vamos fazer com os cerca de 7 milhões de palestinos expulsos de seus territórios? Vamos permitir-lhes o regresso aos territórios, que é a consigna histórica? Somos a favor do seu regresso. Mas se regressarem aos territórios, vão querer as suas terras, vão querer as suas casas. Mas nessa casa haverá certamente um trabalhador israelita, que veio de outro lugar e se instalou lá. Estes são problemas concretos que temos.

Em primeiro lugar, temos de defender o direito das pessoas que foram massacradas e que, até hoje, continuam a ser vítimas de genocídio. Por isso, enquanto discutimos a forma de pôr fim ao genocídio, estes debates são muito importantes e são importantes para a esquerda.

Estamos convencidos de que a única saída, e é por isso que é importante discutir, porque fizemos uma mudança com uma consigna histórico. Alguns de nós levantaram o que era a consigna histórica da OLP, que era o de uma Palestina única e secular, que era um consigna democrática. Pensamos que, na realidade, já não é esse o caso. Em primeiro lugar, porque não há praticamente nenhuma direção que o apoie, porque, ao renunciar à OLP e ao aceitar o Estado sionista, permitiu que se fortalecessem as direções radicais islâmicas que não têm essa política, mas que pretendem aniquilar o Estado de Israel e substituí-lo por um novo Irã. Nós não estamos de acordo com essa política. Há uma disputa com eles. É por isso que acreditamos que a única saída, e volto a consigna inicial, é a revolução socialista para a região. Não haverá saída se não houver uma revolução socialista no Oriente Médio contra as burguesias árabes que permitiram o fortalecimento de Israel.

E para isso é preciso construir um partido, porque não há revolução sem partido. Como é que nos construímos? É por isso que damos importância à política para o Líbano. Digo uma coisa a todas as pessoas. . A primeira vez que fui ao Líbano, convidado pelos camaradas que mais tarde aderiram à Liga Internacional Socialista, fizeram-me uma grande conferência, vieram muitos camaradas da juventude e a primeira pergunta que me fizeram foi: é a favor ou contra a destruição do Estado de Israel? Graças à minha resposta, temos uma seção da LIS no Líbano. Porque muitas vezes se discute de fora os processos concretos e a relação com o movimento de massas e a vanguarda. Não há possibilidade de construir no Oriente Médio sem começar por aí.

Evidentemente, isso não significa recusar uma política relativamente aos movimentos que se desenvolvem no interior de Israel. Há uma crise brutal por causa do regime de Netanyahu. Há um repúdio crescente do que está acontecendo em Gaza. Temos de ter uma política, mas temos de os conquistar para uma política revolucionária, que é a política de estar ao lado da resistência palestina para derrotar este Estado e construir algo novo onde as pessoas possam voltar a viver em paz. Mas estes são debates concretos que devem ser feitos, que temos de fazer com as vanguardas, porque elas existem. A comunidade judaica tem dado permanentemente elementos valiosos à revolução, não só historicamente, mas também no dia a dia. O nosso partido aqui na Argentina tem camaradas muito valiosos que vêm de lá. Há uma forte representação da comunidade judaica no país, por isso temos de lutar.

Como é que definimos a situação mundial? Sei que aqui há uma tendência, herdada da nossa corrente histórica, para tentar permanentemente encontrar uma definição muito precisa para a situação: é uma situação pré-revolucionária, uma situação revolucionária, uma situação não-revolucionária, uma situação contrarrevolucionária? Nós fazemos parte de uma organização internacional que não é morenista, embora o morenismo seja um componente importante, mas é uma confluência com outros camaradas que têm outros mecanismos para definir as coisas. Não queremos fechar a situação em torno de uma definição ou fazer o que muitas correntes fazem, que primeiro definem e depois tentam fazer com que a situação se adapte à definição.

Por exemplo, temos correntes como a LIT, que desde que Nahuel Moreno argumentou que havia uma situação revolucionária, 40 anos se passaram, ainda há uma situação revolucionária. É a mesma coisa se há derrota, se não há derrota, se a direita avança, se a direita não avança, porque nunca se atrevem a mudar. E as definições são concretas, têm a ver com a situação.

Nós, a nível internacional, chegamos a definir que uma possível definição poderia ser pré-revolucionária. Essencialmente porque há lutas em todo o lado, mas falta o fator subjetivo. Mas isso não nos interessa muito. O que nos interessa é definir que existe uma situação de enorme polarização social, porque acreditamos que esta é a melhor definição para compreender o que está acontecendo. Por outras palavras, a situação atual caracteriza-se por uma polarização extrema que atinge todos os países.

Quando fizemos esta definição, Milei não estava no governo e a sociedade não se tinha praticamente dividido em duas. Mas chegou na Argentina, como em praticamente todos os países. Há um polo que tem uma expressão política cada vez mais clara na extrema direita, e temos de o assimilar. É uma realidade do tamanho de uma casa. É uma extrema direita com elementos até fascistas, que não se tornam fascistas porque ainda não conseguiram derrotas históricas da classe trabalhadora em praticamente nenhum país, porque o outro polo responde com luta, mesmo com muitas debilidades, porque o faz sem direção, o grande problema. Mas a direita atua e conquistou uma parte da sociedade. Não podemos ser tolos e não perceber que eles conseguiram uma certa base social e essa base social tem a ver com o fato de os partidos tradicionais de direita, e mesmo os novos partidos de esquerda que surgiram, não terem resolvido nenhum problema, mas, precisamente por causa da crise do capitalismo, por não tomarem medidas anti-capitalistas, nenhum deles conseguiu se manter. Entraram em crise e caíram, e isso abriu a porta a estas expressões de direita, juntamente com o fato de um setor da burguesia e do imperialismo, para implementar os seus planos, precisar de variantes que estejam prontas para ir até ao fim e até para provocar mudanças nos regimes em locais onde a democracia burguesa lhes serviu durante algum tempo, mas já não serve. É por isso que elas são alavancadas por setores muito importantes.

Não se trata de Trump ser louco. Surgiu no principal país do mundo e consegue chegar ao poder. Não é um louco: tem a ver com os poderes que estão por trás dele e com os setores da burguesia que apostam nisso. Expliquei-o ontem no evento: na Argentina não se compreende um Milei sem os Roca, sem os Bulgheroni, sem os grandes proprietários do país, que estão por trás dele e que querem acabar com uma classe trabalhadora que há 40 anos lhes dá cabo dos planos. Eles querem ir atrás de tudo. E o mesmo está acontecendo com a burguesia em todo o mundo, em muitos países onde se querem livrar das conquistas que ainda restam, porque em muitos casos fizeram progressos na sua liquidação, mas ainda restam muitas. Querem ir contra as liberdades democráticas porque elas são um obstáculo.

Ora, eles ainda não conseguiram derrotar a classe operária. É por isso que não temos uma visão cética, nem cedemos à ideia de que “bem, há a direita, vamos esconder-nos”. Também não apoiamos a política daqueles que, perante a direita, nos dizem que a saída é a frente popular e que a esquerda tem de se esconder atrás de setores da burguesia e da burocracia, os fracassados que tentaram governar os países sem conseguir qualquer mudança.

Esta é uma questão concreta, estamos experimentando-a no Brasil, por exemplo. No Brasil temos um grande problema, porque a ferramenta que tinha sido construída, onde o trotskismo teve um papel fundamental, que foi o PSOL, está se desmoronando precisamente porque nele ganhou uma ala reformista, que, perante o medo de Bolsonaro, propôs integrar-se completamente no governo do PT. Nós somos críticos a esta política e por isso querem nos expulsar.

Estes são problemas concretos, viveremos também na Argentina. Não pensem que o peronismo, que está derrotado, está morto. Ele vai inventar uma saída, porque a burguesia vai tentar fazer alguma coisa. E vão tentar pressionar-nos com a ideia de que, para ir contra Milei, devemos nos juntar. É uma pressão concreta que capta a vontade de pessoas muito honestas que estão aterrorizadas com o que acontece, que querem se ver livres deles e que vêem a unidade de todos nós como uma saída.

E atenção, nós somos a favor da unidade, da unidade nas ruas, da unidade na mobilização. Não devemos ser sectários em relação a isso. Não somos sectários na mobilização, mas mantemos a independência política, porque se nós, revolucionários, perdermos a independência política, não há saída para a humanidade, camaradas. Porque a única maneira de a humanidade parar este desastre é surgundo uma direção revolucionária, independente de todos os setores burgueses e burocráticos. E para isso temos que nos manter firmes e disputar a vanguarda, e explicar-lhes que essa não é a saída.

Estes são debates importantes que temos. A partir dos debates globais, surgem as políticas. E, por sua vez, temos de discutir como é que vamos construir uma direção revolucionária. Porque o outro polo, que se manifesta nos Estados Unidos com as greves do ano passado, que foi um dos maiores anos de greve em décadas e que vai continuar este ano, na Europa, na África. Há processos em praticamente todo o mundo, mas têm uma fraqueza – vimo-lo aqui em toda a vaga de lutas na América Latina – que é o fato de não haver direções revolucionárias à frente. A crise de direção revolucionária é muito aguda, porque as massas lutam, lutam, lutam, mas não têm uma direção na frente que lhes permita triunfar, possibilitando à burguesia recompor-se, e os direitistas emergirem.

A nossa grande tarefa é colaborar com o surgimento dessa direção revolucionária. Há países onde temos mais responsabilidade do que noutros, porque há uma certa acúmulo. Eu disse-o ontem no evento: na Argentina há uma enorme responsabilidade porque há acúmulo suficiente para construir uma alternativa forte. É por isso que os debates que estamos tendo na FIT-U não são debates acadêmicos. Porque se não resolvermos este problema corretamente, a esquerda revolucionária vai perder o encontro. É por isso que são debates que temos de ter com força na vanguarda, porque na vanguarda vamos encontrar simpatia.

Todas as mudanças que o partido está debatendo aqui serve para ter uma melhor difusão das ideias, para ter um melhor aparelho de comunicação, para poder ir melhor à vanguarda, estão ligadas a dar este combate e a chegar à vanguarda, que está cansada do PJ mas que, se não vir à esquerda, vai cair nas armadilhas que lhe vão ser montadas de novo, como já estão a ser montadas pela Igreja com Grabois, que diz coisas semelhantes às nossas e é por isso que há pessoas que nos dizem para não sermos sectários. Não temos de ser sectários, mas temos de fazer um debate político, porque Grabois propõe o capitalismo com um rosto humano e as encíclicas do Papa que nunca leremos. Não é essa a nossa proposta de solução. E se a esquerda não reagir, vai reforçar este novo vendedor de ilusões de um capitalismo que não existe, como já está a ser reforçado.

Mas atenção, no PSOL nós temos que fazer uma luta política do nosso partido em relação ao MES e aos setores que, mesmo que de forma tímida, estão à esquerda da direção majoritária, que está completamente subordinada às políticas do PT. Temos de apoiar o processo do NPA, que é um processo muito importante em França, um país central. E temos de construir os nossos partidos, camaradas, ajudar a construir os nossos partidos.

É fundamental inserirmo-nos na classe operária, porque estão surgindo batalhas fundamentais na classe operária. Temos que nos estruturar. Em geral, os nossos partidos estão muito estruturados nos setores estatais e isso é muito bom, porque têm sido permanentemente atacados e continuam a ser atacados. Temos de continuar a reforçar-nos nos professores, nos servidores em geral, na cultura, mas temos de ir ao proletariado industrial. Temos de nos estruturar aí. Temos de recuperar a mística dos nossos jovens de quererem ir para a fábrica, de quererem ir ser dirigentes do movimento operário, o que é difícil, que não é fácil de suportar, mas que é estratégico porque é a nossa classe e começa a deslocar-se para todo o lado, dos Estados Unidos à Europa, à Argentina, em todo o lado. Portanto, temos de nos estruturar aí, sem perder as políticas para a juventude, porque a juventude é uma potência de quadros para poder ir para o movimento operário, para poder responder a tudo. Temos de ajudar os nossos partidos a estruturarem-se entre os jovens, porque muitas vezes é difícil para nós estruturarmo-nos entre os jovens.

Temos de responder às novas questões que surgem. Os problemas ambientais são problemas novos. Não têm nada a ver com os problemas ambientais de 20 anos atrás, que eram essencialmente as reivindicações de setores médios. Hoje são problemas concretos do capitalismo. Temos de responder aos problemas das mulheres, sem cair ou ceder às políticas de identidade, que são prejudiciais à construção partidária. Aproveitam-se de reivindicações reais e concretas para conduzir a políticas completamente erradas. Há uma luta política no movimento de mulheres. Não se trata apenas de “vamos e vamos”: estas lutas políticas devem ser travadas com força.

Para concluir, penso que o projeto da LIS, que é um projeto novo, inovador, que está ganhando simpatia, daí o rápido crescimento que tivemos, embora seja ainda um pequeno polo, continuará a desenvolver-se. Temos de o utilizar em todos os países para nos construirmos, porque a vanguarda acompanha permanentemente os problemas internacionais. E para nos construirmos é fundamental fazermos parte de um projeto internacional. Mas temos de o utilizar, de o propagandear. Nos pequenos grupos da LIS é ainda mais forte, porque dá força aos pequenos grupos para irem para a vanguarda, porque mostra que somos parte de um todo.

A LIS tenta realizar um projeto que não é fácil, que é tentar sintetizar as diferentes tradições do trotskismo e do marxismo numa nova tradição. Não é fácil fazer isso porque é sempre mais fácil estar com pessoas que pensam exatamente o mesmo que nós, como fazem muitas das correntes do trotskismo. Mas esse modelo falhou. Esse modelo teve um papel importante no levantar das bandeiras num período sombrio, que aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial, quando o stalinismo se tornou forte, e permitiu-nos chegar ao ponto em que estamos hoje. O modelo das pequenas internacionais, mais homogêneas, teve um papel importante, não podemos negar. Não podemos olhar para o passado e dizer “não serve para nada”. Mas hoje está esgotado como modelo e é por isso que todos os projetos internacionais que foram construídos em torno de um único partido hegemônico falharam e entraram em crise.

Os ingleses fizeram uma internacional muito grande, que nós não conhecíamos porque estávamos em noutra coisa. Fizemos uma experiência na internacional mandelista, mas não seguimos os ingleses. Quando eles se separaram da IV, não lhes demos atenção e eles construíram, sozinhos, grandes partidos, maiores até do que os construídos pelo mandelismo e os que nós próprios construímos. Mas eles estão em crise. Esse projeto explodiu. Em todo o lado há partidos e grupos que vêm de lá, que têm conclusões semelhantes às nossas, e é por isso que nos ligamos aos camaradas do Paquistão, temos relações fraternas com os camaradas da Austrália, etc.

E nós próprios, a corrente morenista, também explodimos. Sabemos disso, camaradas, e precisamos enfrentar. E explodiu também porque não esteve adaptada à nova era em que vivemos. Para não falar do mandelismo, que está numa crise fenomenal. Quem pensa que pode repetir este modelo vai bater na parede ou tornar-se uma pequena seita. Não queremos isso. Na fase atual é um crime fazer uma seita e recusar construir algo que dispute influência de massas. Porque na atual disputa entre o socialismo e a barbárie, precisamos de construir organizações internacionais e nacionais que disputem a influência das massas, que é a única forma de podermos responder à atual fase. E para isso temos de nos libertar de todas as teias de aranha que temos e apostar na ligação aos outros como única saída. E se o fizermos, creio que estaremos em melhores condições de assumir a luta para contribuir para a resolução da tarefa das tarefas que se colocam aos revolucionários, que é a de ultrapassar a crise de direção revolucionária.

Concluindo, espero que o debate seja frutífero e que, entre todos nós, contribuamos para melhorar e aperfeiçoar ainda mais a nossa política e a nossa orientação. Muito obrigado pelo espaço.

Intervenção de encerramento

A densidade deste ponto mostra que o partido, para além de todas as fragilidades, que serão discutidas para melhorar nos pontos seguintes, conseguiu nos últimos anos uma compreensão muito importante sobre a questão internacional. O debate que aqui teve lugar mostra o interesse e a importância que lhe está a ser dada. Penso que é fundamental, sobretudo nesta fase da nossa vida, sermos um partido cada vez mais internacionalista para percebermos o que se passa e para atuarmos na realidade. E penso que é muito positivo que se avance nesse sentido. Estamos apresentando um documento que, naturalmente, é um complemento dos materiais que debatemos no último congresso mundial. Recordemos que realizamos um congresso mundial em março do ano passado, ou seja, há exatamente um ano. Peço que leiam alguns desses materiais, porque ainda são válidos, resistiram ao teste dos acontecimentos e são muito úteis para aprofundar alguns dos debates que tivemos aqui.

Agora quero retomar alguns debates que não estão no documento, que devemos a nós próprios, especialmente àqueles de nós que vêm da corrente argentina, do chamado Morenismo. É difícil definir quem é morenista e quem não é? Já existem muitas famílias dentro do Morenismo. Portanto, para mim, esta questão define e não define nada. Mas há debates que estão ancorados no passado e penso que é importante abordá-los de uma forma não dogmática e mesmo crítica, se necessário, porque para interpretar a realidade é preciso ter a coragem de ser crítico, mesmo em relação à própria realidade, entre outras coisas também porque as elaborações do Morenismo são de um período diferente do atual. Moreno morreu em 1987. Ainda existem algumas correntes que se dizem morenistas, que continuam a repetir como papagaios o que Moreno disse num período completamente diferente, que nada tem a ver com o presente. Talvez a expressão máxima seja continuar a definir a situação como revolucionária. Por outras palavras, uma definição que serve para todas as etapas, para todas as épocas, para os momentos de retrocesso, de avanço, não serve para nada. De que serve uma definição que nunca nos permite identificar a relação de forças do momento e ver a realidade tal como ela é? Ainda há correntes que se dizem morenistas e que continuam com este refrão.

Penso que temos de repensar algumas coisas. Isto não significa que tenhamos de abandonar toda a nossa bagagem. Mas o marxismo é uma ciência viva, não dogmática, que é constantemente encorajada a mudar. É, de certa forma, uma elaboração que também tem o empirismo no meio, em que se fazem hipóteses e as hipóteses são cumpridas ou não. Não nos apaixonamos pelas hipóteses que fazemos e mantemo-las durante décadas.

Por exemplo, um fato que é evidente e que alguns camaradas abordaram, que é uma elaboração muito nossa, que temos de continuar a trabalhar, tem a ver com a normalização do processo revolucionário. É evidente que no período entre 1945 e os anos 1990 houve uma série de fenômenos que provocaram muito debate e muitos problemas para o trotskismo, porque havia uma combinação de elementos que, de certa forma, iam contra o que tinha sido a experiência fundamental, a Revolução Russa. Por exemplo, nós, que somos trotskistas, estávamos armados com a caraterização de Trotsky de que não havia possibilidade de revolução sem a classe operária industrial como fator fundamental e sem um partido revolucionário, um partido bolchevique. Se faltasse um ou outro, a revolução era impossível. Mas o que é que aconteceu? Trotsky fez outras previsões que também estavam erradas, por exemplo, que a Segunda Guerra Mundial fortaleceria a revolução e levaria o stalinismo à crise. E aconteceu o contrário. A análise destes fatos é muito importante, porque se os repetirmos como papagaios e não enxergarmos a realidade tal como ela é, não conseguiremos juntar as peças.

Ora, o que aconteceu de 1945 a 1990 foi que, sem um partido revolucionário, houve revoluções que acabaram por expropriar a burguesia e, em muitos casos, sem uma classe operária na vanguarda, com o campesinato. Podemos falar da China e de uma série de países que expropriaram a burguesia. Um terço da humanidade acabou no “socialismo real”. Com muitos problemas, porque a sabedoria elementar do marxismo, do leninismo e do trotskismo, era que sem um partido revolucionário e sem uma classe operária, estes processos nasciam defeituosos desde o início, e nisso acertaram. Mas a Quarta Internacional entrou numa crise brutal por não ter compreendido isso, porque, por exemplo, como o Partido Comunista acabou por dirigir os processos, houve um tremendo processo de adaptação aos partidos comunistas. Esse foi o início do revisionismo na Quarta Internacional, que acabou numa explosão e desintegração em várias correntes, numa intransigência permanente, etc.

Não vamos fazer agora um balanço histórico de tudo isso, mas temos de ver que há uma nova etapa, diferente, que é importante analisar. Porque hoje, pelo menos desde os anos 1990 até agora, não houve nenhum processo em que uma direção não revolucionária sem a classe operária tenha avançado para expropriar a burguesia. Isto deixou confusos muitos que estavam habituados à fase anterior. Também fez com que muitos caíssem no ceticismo. “O que é que acontece, não há revoluções que tenham sucesso, a burguesia já não é expropriada?” E também se fez uma campanha para que “o socialismo seja uma coisa do passado”. Não existe um modelo. Havia um modelo, deformado, mas ainda assim um modelo. Estes problemas são novos, devemos resolvê-los. Eu, por exemplo, penso que a corrente de onde viemos, os morenistas, pelo fato de haver direções que, sob pressão das massas e da existência da URSS, avançaram mais do que dizia o seu próprio programa, caímos em traços muito objetivistas. Penso que, no final dos anos 1990, por exemplo, caímos no objetivismo e acreditamos que o ascenso e a crise levavam à possibilidade de novas revoluções, mesmo algumas triunfantes, sem um partido revolucionário de massas à frente. Devemos debater isto, porque creio que ainda hoje há traços objetivistas em algumas correntes que vêm desse passado.

Estamos agora numa outra fase do mundo, que, de certa forma, se assemelha mais ao período pré-1914. Porque antes de 1914 também não havia modelos. Havia a Comuna de Paris, mas era um modelo para poucos, e não deu certo. Os bolcheviques tiraram conclusões fundamentais, sem as quais o Estado e a Revolução de Lenin e uma série de outras elaborações não teriam sido possíveis. Mas também não houve um modelo triunfante. Uma das complexidades desta etapa é não ter um modelo, e mesmo os modelos que existiram não são bem vistos pelo movimento de massas, porque terminaram em catástrofes tremendas, como a URSS, que terminou na restauração capitalista. Podemos dizer que Trotsky tinha acertado, mas isso é só para nós, porque isso não faz com que as pessoas se tornem trotskistas. A mesma coisa aconteceu com o tema de que o “socialismo num só país” ia falhar.

Estas são questões que devem ser debatidas, sobretudo para ver como até uma análise autocrítica permite nos armarmos melhor para a fase em que nos encontramos. Penso que estamos regressando a uma fase em que, sem um partido revolucionário e sem uma classe operária na vanguarda, a revolução não é uma possibilidade. É isto que entendemos por normalização. Isto coloca-nos perante novas tarefas e complexidades que devemos debater. Um debate importante é saber se estamos numa fase que já esgotou as suas forças e, portanto, depois dos anos 1990, passaram tantos anos sem que a revolução tenha acontecido que já não se colocará, ou se estamos numa fase transitória em que temos de ter confiança na classe operária, em que o processo levará a que comecem a existir cada vez mais condições para resolver estas contradições. Eu acredito na segunda hipótese. Mas estes são debates que temos de fazer. Temos que fugir do objetivismo e ter políticas para resolver as contradições e os problemas.

Creio que devemos também rediscutir um conceito que tem uma explicação, sobretudo no início dos anos 1980, devido a uma série de fenômenos que ocorreram no mundo, mas que creio que hoje, quando extrapolado, é confuso. É o famoso conceito de revolução democrática. Pessoalmente, penso que hoje esta definição não serve para nada. Porque é que este conceito de revolução democrática não me serve para nada hoje? Porque penso que, criar expectativas nas mobilizações para aspectos democráticos, numa altura em que o capitalismo está numa crise brutal e não pode obter quaisquer ganhos democráticos, leva-nos a ter ilusões de que vai haver um caminho estagista que conduzirá ao socialismo, o que não é o caso, e nos empurra a não alertar para as fraquezas dos processos.

Por exemplo, penso que o fracasso da revolução catalã tem a ver com o fato de não haver possibilidade de mudança democrática sem um debate de fundo que conduza ao socialismo. O mesmo se aplica ao debate palestino. Hoje em dia, quase não há possibilidade de provocar reformas sem ir diretamente para o confronto. E temos de nos basear nessa realidade, não em acreditar que um triunfo democrático, que é difícil de ver, nos conduzirá e abrirá a porta ao socialismo. Isso não aconteceu. A realidade é a realidade. Não aconteceu. A famosa revolução política que esperávamos não aconteceu. Não aconteceu. A ideia de Trotsky de que a crise da burocracia levaria a um processo em que a mobilização derrotaria a burocracia e a URSS poderia ser recuperada sem revolução política não aconteceu. Não aconteceu. E nós temos que perceber que não aconteceu. Há quem ainda esteja à espera da segunda fase. As coisas são como são na realidade e temos de nos armar com base na realidade, precisamente porque é isso que o marxismo é: não é um dogma. E nada disto aconteceu porque não havia partidos revolucionários fortes e estruturados na classe operária.

Exagerando um pouco, porque se exagera nas polêmicas, digo sempre que, na realidade, os mais “marxistas” da Revolução Russa foram os mencheviques. Porque, de certa forma, Marx tinha previsto que a revolução era impossível num país atrasado como a Rússia, e foi isso que deu um certo suporte ao menchevismo e à maioria da direção bolchevique. Foi por isso que Lenin apareceu dando um chute em seus dentes em abril de 1917 dizendo que a revolução socialista na Rússia estava garantida e que não lutar para tomar o poder era um crime. Porque o marxismo não é um dogma, em que se tem um esquema e se tenta encaixar a realidade nesse esquema. Não: é uma ciência viva. E os esquemas que fazemos para nós próprios, porque precisamos de esquemas, temos de ter a coragem de jogar fora quando a realidade não corresponde a esses esquemas e pensar, abrir a cabeça para pensar, para elaborar.

Temos ainda muito trabalho a fazer, muito, muito trabalho a fazer. Penso que temos de fazer esta elaboração com base no reagrupamento com outros, porque é muito difícil elaborar completamente a realidade a partir de cada um dos pequenos setores que vêm de uma ou outra corrente. E isso tem a ver com o projeto LIS, para conseguirmos uma elaboração mais completa, mesmo sabendo que podemos voltar a cometer erros, é fundamental preparar os ombros, chocar com outras correntes, com outros camaradas que vêm de outras experiências, que foram construídos noutras realidades. É muito difícil, a partir da América Latina, na parte de trás do mundo, acertar e acreditar que se vai acertar num mundo muito complexo e que se vai exportar “a batata” daqui para aqueles que falam urdu, aqueles que falam em línguas que para nós são difíceis de pronunciar. Penso que o contato com outras correntes do marxismo e do trotskismo que se formaram a partir de outros pontos de vista é fundamental. É por isso que o projeto LIS não é só juntar por juntar: é porque acreditamos que esta é a única maneira de tentar resolver o problema da direção, que é o problema mais agudo que temos, mas que não vamos resolver nem daqui nem dali, mas sim num processo de confluência, de debate, de nos ouvirmos uns aos outros.

É por isso que o projeto LIS não é autoproclamar a LIS, embora acreditemos que é importante construir a LIS: é construir a LIS e trabalhar com outros camaradas que não são da LIS, mas com quem temos a perspetiva de um trabalho comum, como os camaradas de França, como os camaradas da Austrália, para estarmos abertos a trabalhar com outros. É por isso que damos importância à participação em eventos como o de Milão, que quando vimos as resoluções dissemos “o que eu vim fazer aqui”. Mas permite-nos ter contato com os outros, permite-nos debater, não cozinhar com o nosso próprio molho.

Vamos a um evento no Brasil organizado pelo MES, por exemplo. Temos acordos e divergências muito importantes com o MES. Agora, não temos de nos furtar ao debate. O MES no Brasil é uma força muito importante. Para a perspetiva de superação do PSOL, que está num processo de degeneração acelerada, temos que ter também uma política para esses companheiros. Porque, para falar a verdade, o deserto fora do PSOL no Brasil é tremendo. É um deserto quilométrico, sem água para construir. Trabalhar para ver se a gente consegue se articular com outros para ver se há alguma perspetiva é muito importante.

O mesmo se passa com as definições. Por exemplo, penso que poderíamos definir a situação como pré-revolucionária. Mas há camaradas a quem dizemos isso e eles não percebem nada. Pensam que bebemos um litro de tequila. Quando se fala com o mundo e se vê o peso que dão à ascensão da direita. Portanto, pode ser um consumo nosso, daqueles que vêm de uma certa corrente. Mas, para mim, a situação de polarização define melhor, é mais compreensível e permite participar num debate para ir ao conteúdo da situação, que não nega os elementos positivos que existem, mas que também não dá a impressão de que tudo está num caminho cor-de-rosa para a revolução, quando tudo o que está a acontecer é mais complexo.

Penso que a polarização é um conceito que define melhor a situação. Porque, por um lado, localiza claramente a extrema direita, que é um problema que não podemos minimizar. Porque, embora não vejamos o fascismo hoje como um projeto consolidado, não podemos negar que, em perspetiva, se a classe trabalhadora e os revolucionários não conseguirem ganhar terreno, pode avançar. Porque se não é socialismo, é barbárie. Porque na frase só gostamos da parte do socialismo, não da parte da barbárie. Bem, mas a barbárie está lá, está na porta, está no canto.

Ora, penso que é importante não só ver este polo, mas também ver o outro polo. Porque o outro é o que abre a possibilidade de a alternativa ser o socialismo. Porque há lutas tremendas e enquanto houver lutas, enquanto houver batalhões pesados do proletariado como nos Estados Unidos, como na Europa, como em Inglaterra. Na Inglaterra houve uma derrota tremenda que foi a greve dos mineiros com Margaret Thatcher, que marcou o início do neoliberalismo e dos ataques brutais a nível mundial. E esse período acabou. Há uma recomposição que está começando na classe operária e são os pesos pesados. Os Estados Unidos não é pouca coisa, porque vale 50 Argentinas, camaradas, que os Estados Unidos estejam se movimentando. Para a definição da situação mundial é qualitativo que nos Estados Unidos o socialismo já não seja um palavrão entre a juventude e entre setores do movimento de massas. É uma coisa qualitativa, embora ainda esteja na fase reformista. Estes são elementos da situação. Na França, os camaradas falaram de uma situação quase pré-Primeiro de maio francês, que não terminou em triunfo, mas abriu uma situação política tremenda.

Ora, não é fácil construir um partido. É uma realidade. Há problemas de consciência que temos de analisar. Também temos que saber que o avanço da extrema direita é um giro que faz com que setores do movimento de massas também se polarizem para o outro lado e avancem e entrem em crise com as direções reformistas, o que devemos aproveitar. Também não podemos ser objetivistas e esperar que os problemas se resolvam por si mesmos. É também aqui que entra a política dos revolucionários. Penso que em muitos locais não há progressos devido aos erros cometidos pelos revolucionários.

Por exemplo, penso que a política do PTS, que é quem comanda daqui a política dos franceses, de sair antes do NPA foi criminosa, porque podiam ter ganho o congresso do NPA, podiam ter provocado uma derrota muito importante do reformismo e teria havido um grande partido. Mas não é essa a sua política, porque são céticos, não acreditam que seja possível. Querem apenas ver se um número ou outro. A política que fazem aqui também é criminosa, para tentarem ter a figura da moda, estão impossibilitando a criação de uma força militante de 30 ou 40 mil pessoas, e até a possibilidade de transformar a FIT-U num grande movimento, onde os partidos atuam como tendências e é o debate político que define quem está certo, mas que ao mesmo tempo promove a revolução na Argentina e transforma a esquerda, que ficou estagnada.

Os camaradas que vêm de fora, que vêem o potencial da Frente, têm de saber que a Frente tem um problema, porque os setores que nos apoiaram ontem, hoje dizem “bem, eu apoiei vocês, mas não vejo a resolverem o problema”. Em alguns lugares, em algumas províncias, eles conseguiram ganhar as eleições. Ganhou em Salta, na capital, ganhou as eleições, tinha a maioria na Câmara Municipal. Muita gente diz: “Bem, eu apoiei vocês, mas o que aconteceu? Isso foi por causa do Partido Obrero. Não chamou todas as forças de esquerda para verem o que raio estamos a fazer com isto, que estamos a pisar um barril de pólvora. A mesma coisa está a acontecer em Jujuy. Lá a responsabilidade é mais do PTS. É um projeto eleitoral, quando deviam ter chamado todas as pessoas, os intelectuais, todas as pessoas. Nós tivemos 25% dos votos da FIT-U e eles tentaram nos ignorar. Na realidade deveríamos convocar um grande plenário, uma assembleia, convocar intelectuais de todo o lado, porque também é preciso mostrar que é uma alternativa. Por outras palavras, a política dos revolucionários tem peso na realidade. Há oportunidades que é preciso saber aproveitar. Claro que em alguns lugares são mais dinâmicos do que em outros.

Olha, fiquei impressionado com Portugal. O exemplo que o Gil deu de um grupo de trotskistas, um pequeno grupo de trotskistas, que conseguiu mobilizar, penso que por duas vezes, cerca de 100 mil pessoas em Portugal e abanar todo o sistema burocrático, porque o Sindical STOP se tornou um polo tremendo. Temos de seguir o fenômeno STOP na Europa para ver se não podemos aprender com ele noutros lugares. E, claro, tem sido difícil para os camaradas transferir este êxito para a política. As seitas podres também atuaram para impedir, porque a UIT, no meio desta questão, para conquistar uma camarada, fez uma campanha contra os dirigentes do STOP. Uma corrente que se diz revolucionária, foi às assembleias dizer que o STOP era dirigido por trás pelo MAS, para se apoderar da parte mais atrasada do movimento sindical e para bloquear. Isto desmoralizou os nossos dirigentes, colocou-os na defensiva. Uma corrente que, para conquistar uma pessoa, tentou destruir a possibilidade de se transformar numa alternativa política. Por outras palavras, as políticas das direções estão funcionando. Eu acredito que Portugal não está perdido e que todos nós temos que trabalhar para ver como é que podemos inverter isto, porque o STOP ainda existe, ainda existe uma oportunidade, e nós temos que trabalhar para encontrar uma forma de traduzir isto em política. E todos nós temos de ajudar. Mesmo, se necessário, num ato de internacionalismo, os camaradas do Brasil enviando jovens camaradas para ajudar na construção. Temos de discutir como é que o fazemos, porque é disso que se trata. Quando há oportunidades, somos todos Portugal, porque se não, não há verdadeiro internacionalismo.

Por isso, penso que a situação é muito contraditória, mas nós, revolucionários, podemos atuar e podemos acumular forças. É muito complexo conseguir uma influência de massas. Mas não é complexo acumular forças, construir partidos de vanguarda, fortalecermo-nos para que um giro na luta de classes, que virá, nos permita dar um salto em alguns lugares e transformá-los num polo. Mas não creio que o possamos fazer de um ponto de vista nacional. Penso que só o podemos fazer a partir de uma perspetiva internacional e ajudando-nos mutuamente, entre revolucionários, a aproveitar as oportunidades que aparecem, para nos fortalecer. Porque o fortalecimento de um local é o fortalecimento de todos.

É por isso que estamos obcecados com este projeto que tenta romper com um passado em que a única coisa que nos interessava era recrutar um. É preciso recrutar, não apenas um, mas dois, dez e 100, porque queremos construir um partido revolucionário. Mas em torno de responder às tarefas da luta de classes e do momento em que estamos, que é tentar ver se podemos começar a fazer pequenos polos e só podemos fazer isso de uma forma internacional. Não podemos fazer localmente, nem sequer na Argentina. Sejamos claros. A LIS tem sido uma ajuda para nós, para nos situarmos politicamente. Sem a LIS, o MST não estaria politicamente localizado. Mesmo com suas fragilidades, o debate internacional, as opiniões dos companheiros, são fundamentais para formar os quadros. Ou seja, não há possibilidade de formar quadros no parâmetro unicamente nacional, sem o contradição e o embate com os outros. Não há possibilidade.

Há debates que devemos aprofundar. Eu, por exemplo, vejo os camaradas da Costa Rica acelerarem a questão das fricções interimperialistas. Porque, embora eu acredite que as fricções existem e que há um processo, a terceira guerra mundial não está na esquina. E isto é importante, porque tem a ver com a política. Nem sequer podemos, como marxistas, dizer “vai haver uma terceira guerra mundial”. Levantamos uma hipótese. Há também outras contradições. Porque, atenção, a bomba nuclear também atua, porque quando uma bomba explode de um lado, também explode do outro lado. E isso é um fato da realidade que, por exemplo, impediu uma terceira guerra mundial e a guerra foi fria durante muito tempo até o colapso da URSS. Agora há uma crescente disputa interimperialista e não podemos dizer que não haverá uma, mas temos que ver os ritmos. Há um setor da esquerda mundial que faz política como se já houvesse uma terceira guerra mundial. Por isso dizem que o centro é o derrotismo em todo o lado. E sim, mas o derrotismo na Rússia é ótimo, o derrotismo nos países imperialistas é ótimo, mas será que também devemos ser derrotistas na Ucrânia, ou seja, permitir que Putin vá até Kiev e ponha um fantoche no lugar? Não, não é uma política correta. Se houvesse uma terceira guerra mundial, seria correto. Mas atenção, porque Lenin, ao analisar a Primeira Guerra Mundial, disse sobre a Sérvia que era uma vergonha o fato de a eclosão da Primeira Guerra Mundial ter encoberto o problema nacional da Sérvia. Não pensemos que todos estes fenômenos são novos. Tem havido muitos fenômenos semelhantes no mundo. Mas estes debates são complexos.

A Maidan ucraniana foi contra um governo que era um satélite da Rússia. Um processo que, de certa forma, era regressivo. Mas tem pontos de contato com o que aconteceu, por exemplo, quando a União Soviética caiu, quando, devido à ausência de direção revolucionária, até as forças contrarrevolucionárias se tornaram fortes. Ao fazermos uma análise unilateral da Maidan podemos cair no erro de ser contra a mobilização de massas e acabar apoiando um governo que era um fantoche da Rússia. O problema é o da direção revolucionária. Penso que estas questões têm de ser bem analisadas e não de forma superficial. Até as campanhas do próprio Putin sobre esta questão estão caindo por terra, como se a Ucrânia fosse um caso único no mundo em que todo um país é fascista e de direita, quando não é, é mais contraditório, mais complexo. Mas bem, devemos também debater isso.

Devemos continuar escrevendo sobre a China, porque há um debate que é o imperialismo. Mas há outra questão, que é a preocupação permanente dos camaradas do Paquistão. E a China está mais próxima do Paquistão do que da Argentina ou da América Latina, e os debates são muito mais concretos. Estes são elementos que temos de utilizar a serviço da nossa proposta. É evidente que a China se desenvolveu como uma potência capitalista e um imperialismo muito rápido, em parte porque utiliza a centralização da economia. Este é um fato da realidade. E nós defendemos a centralização econômica, a serviço de um projeto socialista, não a serviço de um projeto imperialista. Mas é uma realidade que temos de usar, pois em algum momento, não quero entrar em uma polêmica, usamos “socialismo com democracia” para tentar explicar. Aqui tínhamos um problema com Cuba, tentamos explicar a defesa de Cuba e dizer que lhe faltava algo. Estamos sempre fazendo malabarismos para manter um diálogo.

Depois, há a questão tática do nome, do socialismo e da forma como o utilizamos. Para mim, o problema central é o fato de termos de elevar o socialismo, o programa. Na Ucrânia, os nossos camaradas chamam-se a si próprios Liga Socialista Ucraniana e têm sobrevivido durante bastante tempo. Dependerá da luta de classes, da forma como esta evoluir. Penso que, se a guerra for perdida, haverá um processo contra Zelensky e contra tudo. Quando todos os combatentes regressarem para pedir um emprego que não existe, veremos o que acontece na Ucrânia. Claro que, se ganharmos, para mim seria uma onda de choque: iria para a Rússia, para os outros lugares. Mas isso é outra questão.

Penso que há muitos pontos fracos na LIS que devemos atacar. Por exemplo, temos de atacar melhor a questão das redes sociais, temos de atacar melhor a questão das campanhas. Temos feito campanhas, mas tem sido difícil. Não temos um boletim informativo e isso impede-nos de socializar mais sobre muitas coisas. Demos muita importância à Web, mas menos a isso. Precisamos avançar. A LIS é um projeto que ainda está dando os primeiros passos e todos temos de trabalhar em conjunto para melhorar.

Mas penso que nos poucos anos da LIS demonstramos algumas coisas. Ninguém impôs a nenhuma direção nacional a política que foi desenvolvida noutro lugar. Temos tido paciência para fazer alguns dos debates porque acreditamos realmente neste projeto. Não acreditamos que ninguém, seja grande ou pequeno, tenha de impor políticas a ninguém. O que pretendemos é criar oportunidades de debate para que haja convicção nas políticas que têm de ser aplicadas. E para mim esse é um ponto fundamental. Porque nós precisamos de construir um projeto que ouve os outros.

Penso que o partido paquistanês é um partido fundamental na construção da LIS, porque é muito difícil construí-la no Paquistão. É muito, muito mais difícil do que construí-lo em países com uma certa estabilidade democrática, ainda que agora se esteja perdendo, com situações econômicas muito diferentes, com sociedades mais atrasadas, resultado do fundamentalismo e do desenvolvimento econômico do país. E isso tem a ver com o que eu disse sobre os ingleses. Penso que os ingleses construíram partidos em lugares muito complexos.

Agora, ao mesmo tempo, os projetos internacionais dos ingleses explodiram. Porque é que explodiram? Porque é que Peter Taffe está hoje sozinho, depois de ter sido um dos dirigentes que construiu uma grande internacional? Porque é que todos os partidos explodiram e o deixaram sozinho? Foi uma rebelião contra o partido inglês e todos saíram. Formaram outra experiência chamada Alternativa Socialista Internacional. Porque Peter queria continuar a impor a cada uma das seções a política da Inglaterra. Sobretudo os irlandeses, que se tinham desenvolvido com uma força importante e assumido uma causa muito importante que os catapultou para cima, que era a casa feminista. E como Peter Taffe era contra, tentou organizar uma facção contra os irlandeses e o tiro saiu pela culatra. Conseguiu uma facção diferente, majoritária, mas contra ele. Por outras palavras, a questão do partido-mãe é política. Penso que, por exemplo, o pequeno partido francês dos 200, que sobrou dos mandelistas, continua a ser um partido-mãe. Porque não tem só a ver com números: tem a ver com acreditar, essas direções, que continuam a ser a direção fundamental para a construção do projeto internacional e que a partir daí vão fazer política aqui ou ali. Essa direção impôs na Grécia que tinha que ir para o lado do Syriza quando era contra a direção grega e o partido que tinham lá, que queria ir para o outro lado com o Antarsya. E assim sucessivamente com cada um dos grupos. E é isso que divide os partidos: a imposição. É correto, por exemplo, na Inglaterra, defender-se contra o ataque xenófobo aos muçulmanos. E é correto defender, como na França, que se apresentem candidatas muçulmanas. Mas é errado, como os ingleses queriam fazer, impor a mesma política aos países muçulmanos, onde nesses países ocorre o cheque contra o islamismo, que não devemos capitular.

A base para nós, e tem de haver um controle social de todos os partidos, é saber que temos uma direção muito fraca, que não liderou nada, que só pode exportar uma experiência fraca do que nós fazemos e que só poderá transformar a sua direção no dia em que nós dirigirmos alguma coisa. E para isso precisamos trabalhar em equipe, com os partidos, com os militantes e com cada um dos grupos maiores ou menores que temos.

31.03.2024 – Aprovado por unanimidade

(junto ao documento da LIS)


[1] Socialismo o Barbarie