Por Oleg Vernyk, presidente do Sindicato Independente da Ucrânia “Zakhist Pratsi” – Liga Socialista da Ucrânia

As manifestações em massa na Ucrânia começaram no dia 22 de julho de 2025, imediatamente após o presidente Volodymyr Zelenski sancionar quase instantaneamente o projeto de lei nº 12414, aprovado com igual rapidez pela Rada Suprema¹, que na prática liquida a independência do Escritório Nacional Anticorrupção da Ucrânia (NABU) e da Promotoria Especializada Anticorrupção (SAP).

Já no dia 23 de julho de 2025, os protestos se espalharam por diversas capitais regionais do país e em Kiev foi realizada uma manifestação de dimensões não vistas desde o Maidan de 2014. Os dirigentes do NABU e da SAP agradeceram publicamente a todas as pessoas que tomaram as ruas. Em Kiev, mais de 1.200 pessoas se reuniram na Praça Iván Frankó exigindo que o presidente Zelenski vetasse a nova lei. É importante destacar que essas manifestações ocorreram em todo o país apesar da proibição oficial de protestos, vigente desde o início da invasão militar em larga escala pela Rússia em 2022.

O que são o NABU e a SAP?

O Escritório Nacional Anticorrupção da Ucrânia (NABU) e a Promotoria Especializada Anticorrupção (SAP) são dois órgãos extraordinários de repressão penal criados em 2015 após a vitória do Maidan, sob pressão dos parceiros ocidentais do novo governo pró-Ocidente da Ucrânia. O FMI, o Banco Mundial, a União Europeia e os Estados Unidos condicionaram diretamente sua ajuda financeira à criação e funcionamento de instituições anticorrupção, entre elas o NABU e a SAP. A criação do NABU, em particular, foi uma exigência chave para a liberação de parcelas do FMI e para o recebimento de ajuda macrofinanceira por parte da UE.

O NABU recebeu competência para investigar de forma independente crimes de corrupção, identificar figuras corruptas entre os altos cargos ucranianos e encaminhar os casos à SAP para que fossem judicializados. O diferencial desses órgãos é que sua direção não era nomeada exclusivamente pelas autoridades ucranianas: metade da comissão encarregada de escolher os diretores era designada com o aval ou recomendação de parceiros internacionais, especialmente ONGs estrangeiras que terminaram exercendo uma influência decisiva nas prioridades e orientações dessas instituições.

É importante destacar que as organizações internacionais com maior influência sobre o NABU e a SAP estavam alinhadas ao Partido Democrata dos EUA e a um de seus principais financiadores, o magnata George Soros. Desde 2015, essas entidades puderam pressionar diretamente a elite política ucraniana em função de seus próprios interesses. Quando as autoridades tentavam atuar com independência ou favorecer a oligarquia local, o NABU e a SAP respondiam judicialmente, inclusive contra altos escalões do Estado. Mas quando o governo não entrava em choque com os interesses dos “parceiros ocidentais”, o ímpeto investigativo dessas instituições diminuía.

É claro que o fato de órgãos centrais da Justiça ucraniana não estarem sob controle direto do Estado soberano levanta muitas dúvidas. Esses mecanismos de “tutela externa” violam o próprio princípio da soberania nacional e os fundamentos constitucionais do poder popular. A classe dominante que emergiu do Maidan foi obrigada a aceitar essa humilhação devido à sua extrema dependência da ajuda econômica e financeira do bloco ocidental.

Entretanto, num cenário de corrupção endêmica na administração pública, a existência do NABU e da SAP exerceu um papel relativamente positivo, ao menos como freio parcial ao apetite dos burocratas. Frequentemente conseguiram levar adiante investigações contra figuras do mais alto escalão da classe dominante ucraniana.

No entanto, em um cenário de corrupção endêmica na administração ucraniana, a existência do NABU e da SAP desempenhou um papel relativamente positivo, ao menos como um freio parcial ao apetite dos funcionários. Com frequência, conseguiram levar adiante investigações até mesmo contra figuras do mais alto escalão da classe dominante ucraniana.

Durante a presidência de Petro Poroshenko, foi o NABU que abriu processos de grande repercussão contra seu círculo mais próximo: o caso “Ukroboronprom” (corrupção na indústria de defesa), a venda da empresa “Leninska Kuznia”, o fornecimento de combustível pela empresa “Trade Commodity” e a interferência na escolha de juízes da Suprema Corte. Esses casos contribuíram significativamente para a queda de popularidade de Poroshenko e sua derrota nas eleições de 2019.

Por que Zelenski decidiu atacar o NABU e a SAP?

Apesar de inúmeras tentativas, nem Zelenski nem o Escritório da Presidência (dirigido por Andriy Yermak) conseguiram submeter totalmente o NABU e a SAP ao seu controle. Embora tenham controle absoluto sobre o Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU), a Procuradoria-Geral e o Escritório de Investigação do Estado (DBR), não conseguiram frear as investigações do NABU contra seus aliados mais próximos.

Recentemente, investigadores do NABU abriram casos contra pessoas muito próximas a Zelenski, como o vice-primeiro-ministro Oleksiy Chernyshov, que precisou sair temporariamente do país à espera de garantias. O diretor do NABU, Semen Kryvonos, denunciou publicamente pressões do governo nessa investigação. Também se preparava uma acusação contra Timur Mindich, coproprietário da produtora “Kvartal 95” e apontado pela imprensa como “o homem do dinheiro de Zelenski”.

Diante dessa ameaça direta, Zelenski decidiu se antecipar. Como mencionado, o maior controle sobre o NABU é exercido por organizações ligadas ao Partido Democrata dos EUA e a Soros. É provável que Zelenski não tivesse ousado esse ataque sem a anuência tácita de Donald Trump, com quem teve uma reaproximação recente. Trump tem interesse em enfraquecer a influência de seus rivais políticos dentro da Ucrânia. Durante décadas, o Partido Democrata construiu uma rede de organizações financiadas pela USAID que atuam como “sociedade civil” no país.

Antes do ataque ao NABU, o governo já havia iniciado uma ofensiva contra um dos principais representantes do entorno de Soros e do Partido Democrata na Ucrânia: Vitaliy Shabunin, presidente do Centro de Ação Anticorrupção (CAP). O DBR, sob controle de Zelenski, o acusou de evasão do serviço militar e fraude, enquanto Shabunin denunciou perseguição política. Ainda que as acusações não pareçam infundadas, é suspeito que, após anos de guerra, nada tenha sido feito contra ele – e que só agora, ao criticar abertamente o entorno presidencial, tenha começado a repressão.

Em que consiste a Lei nº 12414?

A nova lei transfere, na prática, o controle do NABU e da SAP para a Procuradoria-Geral, subordinando-os politicamente à Presidência. Os pontos mais alarmantes incluem:

  • O procurador-geral poderá acessar todos os processos do NABU, transferi-los a outros promotores, influenciar investigações, assinar acusações e arquivar casos sem o aval do NABU ou da SAP;
  • O procurador-geral poderá emitir ordens escritas obrigatórias a investigadores do NABU;
  • Terá a prerrogativa de arquivar processos contra altos cargos (presidente, deputados, juízes, chefes militares);
  • Apenas o procurador-geral poderá assinar acusações contra altos funcionários, algo que antes era competência do NABU.

E, talvez o mais grave: pela primeira vez se introduz uma norma que anula, de fato, o direito constitucional à inviolabilidade do domicílio. Bastará uma suposta “urgência para preservar provas” para que um promotor ou investigador entre sem ordem judicial. É mais um passo no caminho autoritário trilhado pelo governo, amparado na lei marcial.

Reação dos “parceiros europeus” da Ucrânia

Apesar do silêncio relativo de Trump e seu entorno, diversos representantes europeus condenaram energicamente a decisão de Zelenski.

Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, expressou sua preocupação em conversa com Zelenski, lembrando que o Estado de direito e o combate à corrupção são condições inegociáveis para a entrada na UE.

Marta Kos, comissária europeia de Ampliação, classificou a nova lei como “um sério retrocesso” e reiterou que a independência do NABU e da SAP é um critério fundamental para a adesão.

Guillaume Mercier, porta-voz da UE, afirmou que por ora não se cogita suspender a ajuda financeira à Ucrânia, mas que a transparência e o respeito ao Estado de direito são pilares do apoio europeu.

Declarações semelhantes vieram do Parlamento Europeu e de parlamentos nacionais da UE.

Zelenski recua?

A situação saiu do controle de Zelenski e Yermak. Nem mesmo a habitual retórica propagandística de acusar o NABU e a SAP de estarem infiltrados por espiões russos – algo absurdo, dada sua origem e tutela ocidentais – funcionou dessa vez.

Na noite de 23 de julho e durante o dia seguinte, Zelenski publicou diversas declarações tentando conter a crise. Afirmou que “ouve a cidadania” e que não ignora o sentimento social. Reconheceu o direito de protestar e prometeu apresentar em breve um novo projeto de lei para garantir a independência dos órgãos anticorrupção e reduzir a influência política sobre eles.

Ainda é cedo para saber se essas palavras irão conter os protestos, mas é evidente que a oposição parlamentar burguesa tenta capitalizar a mobilização. No dia 23, já se percebeu a movimentação do partido de Poroshenko e de setores ligados ao prefeito opositor de Kiev, Vitali Klitschko.

Contudo, a maioria das pessoas saiu às ruas sem seguir palavras de ordem burguesas. Trabalhadoras, trabalhadores e estudantes estão fartos da corrupção e da brutal desigualdade social no contexto da resistência à agressão imperialista russa.

É importante ressaltar que a “quinta coluna” do imperialismo russo não conseguiu instrumentalizar esses protestos para promover seus interesses nem enfraquecer a resistência popular. Os provocadores pró-Rússia foram imediatamente isolados pelos próprios manifestantes.

Análise socialista e nossas palavras de ordem neste momento

Não nos interessam os conflitos entre diferentes frações da burguesia. Sabemos bem que o NABU e a SAP jamais foram verdadeiramente independentes. São órgãos do aparato repressivo burguês, a serviço de distintos setores da classe dominante.

Sua própria existência expressa a falta de soberania da Ucrânia e seu papel subordinado no sistema imperialista global. Não apoiamos nenhuma forma de tutela externa por parte de potências imperialistas – seja o agressor militar russo ou os “parceiros” ocidentais.

Mas, como socialistas ucranianos, também não somos indiferentes diante da escalada autoritária e do ataque aos direitos democráticos. O povo ucraniano tem direito a instituições anticorrupção independentes e sob controle popular. Qualquer democracia burguesa é preferível a uma ditadura burguesa. Esse é um princípio elementar da análise marxista. Como tem afirmado a Liga Internacional Socialista, hoje quem defende de forma consequente as liberdades democráticas é a esquerda.

Nossas palavras de ordem neste momento são claras para todas as trabalhadoras, trabalhadores e jovens da Ucrânia:

  • Fora as mãos do NABU e da SAP! Viva a mobilização operária e estudantil!
  • NABU e SAP sob controle das massas populares ucranianas e não de manipuladores estrangeiros!
  • Viva o controle operário e estudantil sobre os órgãos anticorrupção!
  • Não à tutela externa da Ucrânia! Não à guinada autoritária do governo!
  • Não permitiremos que o legítimo descontentamento popular seja instrumentalizado pelo imperialismo russo!
  • Viva a alternativa socialista e anticapitalista!

24 de julho de 2025


¹ Nota da Tradução: Parlamento da Ucrânia