O desafio da nossa época: crise socioambiental, revolução e transição socialista

A matriz de produção e consumo subordinada ao lucro privado — sustentada pelo regime de propriedade das grandes corporações, pelas fronteiras nacionais que dividem artificialmente os povos e por suas consequências socioambientais — coloca a civilização humana, tal como a conhecemos, diante um desafio histórico sem precedentes. Com esta contribuição, buscamos abordar, desde uma perspectiva marxista, socialista, internacionalista e revolucionária, as coordenadas para um plano de resgate do nosso mundo em colapso, vítima de um modo de produção–apropriação–devastação historicamente esgotado.

Lutamos por uma reorganização integral da economia, das relações sociais e da vida política, assim como por uma nova forma de relação entre a humanidade e a natureza, baseada em outra racionalidade: sem a lógica do capital e da acumulação privada como lei suprema. Por isso, ao curso ecocida do sistema capitalista, contrapomos uma perspectiva socioambiental que definimos como ecossocialista. Para a esquerda, este tema impõe exigências teórico-políticas, programáticas e organizativas diante de um fenômeno relativamente novo. Há intensos debates dentro do movimento socioambiental que exigem posições firmes em princípios e estratégia, sem dogmatismos, mas com elaboração coletiva para interpretar realidades inéditas do século XXI.

Ainda assim, não partimos do zero: o marxismo nos oferece um acúmulo teórico e metodológico que permite intervir de forma enraizada e coerente.

Por fim, este tema tem grande importância para a LIS por várias razões:

  • Porque as consequências do desastre ecológico e seus impactos sociais são planetários, e nenhuma região do mundo está imune a eles.
  • Porque é uma problemática que desperta sensibilidade e mobilização em amplos setores de vanguarda, que, ainda que de maneira desigual, se estendem pelo mundo e interessam especialmente (embora não exclusivamente) à juventude (setor chave para a construção das nossas seções e para a formação de novos quadros revolucionários). Além disso, cresce cada vez mais o número de pesquisadores e cientistas críticos, de jornalistas anticapitalistas especializados e de intelectuais progressistas, o que representa também uma oportunidade de influência e recrutamento para a LIS.
  • E, finalmente, porque um projeto revolucionário internacional que se propõe a dirigir revoluções, tomar o poder e construir a transição ao socialismo precisa de um programa de medidas “ponte” para a remediação socioambiental do desastre com o qual a humanidade terá de lidar ao superar o capitalismo. Tudo isso na perspectiva de reconstruir o que Marx chamou de metabolismo entre a sociedade humana e a natureza, rompido pela lógica da acumulação privada.[1]

Uma catástrofe em curso

Em escala planetária, vivemos um ciclo de transformações ecológicas que se retroalimentam de alterações na economia e na política. Por volta de 2015, o Programa Internacional sobre a Geosfera e a Biosfera publicou um relatório segundo o qual já haviam sido ultrapassados os limites de equilíbrio do sistema terrestre em três dos nove parâmetros fundamentais para a sustentabilidade ambiental da vida humana:[2]

  • A concentração de gases de efeito estufa;
  • A destruição da biodiversidade;
  • A alteração do ciclo do nitrogênio.

Uma década depois, os mesmos pesquisadores afirmam que também foram superados os limites de sustentabilidade relativos à água doce, à degradação do solo e à contaminação por novas substâncias químicas. É muito provável que o limiar da acidificação dos oceanos também já tenha sido ultrapassado. A dinâmica de catástrofe ecológica, portanto, já é uma realidade, não uma ameaça futura. A tarefa agora é freá-la, reduzi-la e impedir que desemboque em um cataclismo, entendido aqui como um evento de magnitude comparável ao asteroide que provavelmente causou o desaparecimento dos dinossauros há cerca de sessenta milhões de anos. A diferença fundamental é que aquele foi um cataclismo natural. Hoje, a voragem produtivista do capital amplia a ameaça de cataclismos que não são naturais, mas provocados pelo próprio modo de produção e consumo vigente.

A ciência já documentou diversas formas potenciais de cataclismo:

  • Uma delas, menos conhecida, é a morte dos oceanos, que pode resultar da alteração dos ciclos do nitrogênio e do fósforo;
  • Outra, mais conhecida, é a cadeia de retroalimentações positivas do aquecimento global, que poderia levar a Terra a um novo regime energético: o planeta de vapor.

É importante destacar que essa cadeia de retroalimentações pode começar ainda abaixo dos dois graus Celsiuse nos levar rapidamente a um aquecimento de cinco graus. No ano passado, pela primeira vez, foi superado o limite de1,5°C acima da era pré-industrial. Já estamos, portanto,na zona de perigo.

Um cataclismo como o do “planeta de vapor” seria irreversível em escala humana. Suas consequências ecológicas e sociais são inimagináveis:

·         Por exemplo, elevaria o nível dos oceanos em mais de dez metros;

·         A Terra poderia voltar a ser um planeta sem gelo.

Do ponto de vista das consequências, entraríamos num cenário de altíssima incerteza. Mas duas coisas são absolutamente certas: quantitativamente, esse ponto de inflexão é incompatível com a presença de oito bilhões de seres humanos na Terra; qualitativamente, é incompatível com o que chamamos de civilização, tal como se desenvolveu desde a última glaciação, há 11 mil anos. Entraríamos, sem dúvida, numa era de barbárie estrutural e de falência da humanidade.

Tomadas em conjunto, a ciência e a tecnologia modernas talvez sejam capazes de repelir um asteroide que caísse sobre a Terra. No entanto, sob a direção do capital, são impotentes para deter a catástrofe ecológica. O conhecimento científico dominante é inútil por uma razão simples: a ciência hegemônica se recusa a enxergar a causa social da catástrofe, a lei fundamental da acumulação capitalista.
 
No fim das contas,a luta contra a catástrofe ecológica é uma luta de classes.

Ecofascismo e capitalismo verde: as duas receitas da classe dominante

A polarização extrema do mundo também se expressa no terreno socioambiental. Dentro da própria classe dominante global há duas variantes taticamente opostas, mas estrategicamente convergentes:

·         O produtivismo reacionário e ecofascista da ultradireita mundial, que combina incentivos à indústria fóssil com negacionismo climático, obscurantismo ideológico, racismo e xenofobia. É a escola do trumpismo e de seus seguidores mundo afora. Representa as corporações do petróleo, os bancos e as transnacionais extrativistas mais concentradas. Sua tese é que o aquecimento global é um fenômeno natural e que os críticos da indústria petrolífera seriam inimigos do “desenvolvimento” e do “crescimento econômico”. Embora tenham pouca influência direta sobre a juventude mobilizada, e, em geral, o efeito oposto, atuam através das burocracias sindicais sobre o movimento operário. Daí sua importância, e a necessidade de combatê-los frontalmente, sobretudo no interior dos sindicatos e organizações de trabalhadores, desmascarando o que realmente representam.

·         O capitalismo verde, o Green New Deal dos reformismos e progressismos de diferentes matizes (a começar pelos EUA e suas variantes europeias), propõe “regulações ambientais”, “incentivos fiscais à produção verde” e outras saídas reformistas e insustentáveis, tanto no marco do capitalismo quanto ambientalmente. Trata-se de uma mistura de neokeynesianismo com “economia verde”.
Denunciam o aquecimento global e aprovam, em cúpulas climáticas caríssimas, medidasdeclarativas de proteção ambiental, metas de redução de emissões e controles que nunca saem do papel. Suas políticas costumam se limitar à cobrança de “impostos sobre o carbono”, que em vez de desincentivar o uso de hidrocarbonetos, apenas encarecem o produto final pago pelos consumidores da classe trabalhadora. Assim, criam novos nichos de negócio para empresas capitalistas “verdes”subsidiadas pelo Estado, um negócio redondo… e poluente.

Como ocorre no terreno político geral, também nesse campo a frustração com as variantes do capitalismo verde, incapazes de reduzir a depredação ambiental, garantir uma transição real ou enfrentar as consequências sociais das crises capitalistas, abre espaço para o avanço das expressões ecofascistas negacionistas. Estas ganham audiência entre setores empobrecidos da classe e do povo, com um discurso contra o “ecologismo antidesenvolvimentista”, defendendo o uso irrestrito dos recursos naturais em nome do “crescimento econômico” e das supostas melhorias para a classe trabalhadora. Apresentam toda crítica socioambiental comoideologia pequeno-burguesa e antioperária.

Em última instância, são polos complementares da mesma lógica capitalista, que explora tanto a força de trabalho quanto a natureza, com táticas e ritmos diferentes, mas o mesmo caráter de classe.

A batalha ecocultural: polêmicas no movimento socioambiental

O quadro geral de devastação produzido pelo capitalismo colocou a questão “ecológica” no centro da agenda política mundial, tornando impossível encobri-la. Nos anos que antecederam a pandemia, o movimento ativista liderado por Greta Thunberg e suas diversas expressões ao redor do mundo ampliou a vanguarda do setor. Até hoje, não existem aparatos consolidados nem burocracias rígidas que hegemonizem o movimento. Por isso, identificar as correntes atuantes, compreender suas posições e desenvolver uma crítica sistemática é fundamental para armar a militância da LIS neste terreno.

– O autonomismo antipartido: Essa corrente, com certo peso ideológico entre setores de vanguarda, parte da ideia de que, diante da dificuldade de enfrentar o capitalismo e seus Estados centralizados, a saída estaria na construção de “ilhas não capitalistas” de autogestão autônoma fora do poder estatal. Elevam experiências localizadas, cooperativas, redes de comércio justo ou iniciativas comunitárias, à categoria de estratégia. É a teoria pós-moderna da coexistência com o capitalismo depredador, que alimenta, sob o ceticismo, uma forma de possibilismo resignado. Devemos explicar que apoiamos tais experiências enquanto formas de resistência, mas que elas são absolutamente dependentes das correlações de forças e, quando estas mudam, as “ilhas não capitalistas” desaparecem. Essas experiências devem servir como ponto de apoio para uma estratégia de transformação global e estrutural de todo o sistema capitalista.

– O “ecologismo popular” e as variantes do ecofeminismo: Defendem uma concepção baseada nos povos originários, camponeses e no movimento feminista como sujeitos centrais da “transição pós-capitalista”. Reivindicam a relação mais equilibrada com a natureza que esses setores historicamente mantiveram e reconhecem seu papel nas lutas territoriais contra o capitalismo extrativista, megamineração, agronegócio, fracking, entre outros. No entanto, negam o papel estratégico da classe trabalhadora, e frequentemente idealizam uma volta à “ruralidade”, resgatando concepções pré-marxistas. Nós defendemos a mais ampla unidade de ação com esses setores nas lutas contra as corporações e governos que saqueiam e destroem o ambiente. Mas, ao mesmo tempo, debatemos o sujeito estratégico da transformação, a necessidade de um partido revolucionário e um programa de transição. O socialismo que defendemos inclui reforma agrária, programa antipatriarcal e a defesa do direito à autodeterminação dos povos originários, concebendo a plurinacionalidade ou federação como forma de articulação sem assimetrias nem opressões.

– O decrescimento como saída: Essa corrente propõe uma autolimitação individual do consumo para combater a “ideologia do crescimento”, sem considerar o recorte de classe. Seu principal teórico, o francês Serge Latouche[3], deriva dessa visão teses semi-malthusianas, que atribuem o problema ambiental ao crescimento populacional, especialmente no Sul global, recaindo num eurocentrismo reacionário. Há versões “de esquerda” dessa posição, mas, em vez de propor uma saída estrutural e sistêmica, insistem na responsabilidade individual e cultural, de caráter idealista. Com essas correntes, polemizamos apresentando nossa caracterização materialista das causas da crise socioambiental e nosso programa de medidas transitórias.

– As teorias da “desobediência”: Um dos coletivos que mais cresceu entre a juventude foi o Extinction Rebellion (XR), fundado na Inglaterra. Seu programa reivindica a resistência pacífica e a desobediência civil, inspirando-se em autores como Thoreau, Luther King e Gandhi. Propõem ações coletivas para “forçar” os governos a reagirem e mudarem. Em vários países, disputam a vanguarda de esquerda[4] e têm atrativo por suas ações diretas e táticas de boicote, embora mantenham a ilusão de que leis progressivas poderiam, dentro do capitalismo, garantir mudanças duradouras. Nós atuamos em unidade de ação em campanhas e boicotes, apoiando medidas parciais positivas, mas explicamos que sem transformações sistêmicas econômicas, políticas e sociais, nenhuma conquista reformista se sustenta no tempo.

– O “ecossocialismo” do SU: essa corrente, que se referencia no antigo mandelismo, tem essencialmente duas limitações estratégicas fundamentais. Por um lado, ela inclui a classe trabalhadora como apenas mais um “sujeito” da articulação social necessária para superar os limites do capital. Por outro lado, não valoriza a construção de um partido revolucionário mundial militante para a luta pela transição ao socialismo. Nosso uso tático da identidade “ecossocialista” para popularizar o socialismo no movimento socioambiental obviamente tem um conteúdo e uma concepção diferentes de uma perspectiva revolucionária, militante e internacionalista.

– Produtivismo de esquerda e o esnobismo teórico: Também polemizamos com correntes do campo trotskista que oscilam entre um dogmatismo fossilizado, incapaz de incorporar inovações teóricas a partir do método marxista, para interpretar os novos fenômenos do capitalismo em declínio no século XXI e outras que se adaptam às modas pós-modernas do debate ambiental.

No primeiro grupo, poderíamos incluir correntes como a UIT (CI), para quem não há nada de novo e tudo está escrito nas obras de Marx e Engels. Ou o PO da Argentina que, embora não tenha uma corrente internacional, tem algumas relações no mundo e também está inscrito nessa posição que, além de apoiar essa ou aquela luta ambiental ou de se unir a alguma frente única que possa surgir, programaticamente sua posição continua sendo a do mantra do controle operário que resolve tudo.

Ou seja: a lógica seria que o capitalismo desenvolveu forças produtivas até certo ponto e que agora a tarefa histórica da classe trabalhadora é arrancar da burguesia a direção política da sociedade, colocar toda a estrutura produtiva sob o controle dos trabalhadores e, assim, finalmente resolver todos os problemas ambientais. Essa visão ignora aspectos cruciais do desenvolvimento de forças destrutivas sob o capitalismo nesse estágio, na forma de ramos inteiros da economia que não têm nenhum significado social útil em sua natureza, não no sentido dado a eles pelos capitalistas. A herança que o capitalismo, na evolução para a barbárie, deixará para a humanidade na transição para o socialismo exigirá a abolição de indústrias, de ramos inteiros de produção e sua substituição por outros, reconvertendo a formação dos trabalhadores desses setores.  Todas as atividades extrativistas (agronegócio, fracking, megamineração), o setor de publicidade capitalista, o padrão de produção conhecido como obsolescência programada e outras variantes. Os problemas de maus tratos aos animais ou o setor de alimentos em geral também exigem uma reformulação programática que vá além de qualquer dogma produtivista.

Um caso especial para seguir é o da LIT (CI), que acaba de passar por uma nova e muito profunda crise, com várias rupturas. Como podemos deduzir da resolução publicada pela direção oficial sobre a questão ambiental, esse assunto também fez parte da polêmica. Essa corrente, assim como o PO ou a UIT, vem respondendo há anos de forma dogmática e sectária às confusões do ativismo e às falsas ideologias que circulam. Aparentemente a intenção é se atualizar, veremos se isso acaba em um avanço entre outras questões no campo ecológico ou se continua nas mesmas posições equivocadas. 

Obviamente, o outro polo unilateral e equivocado é o da Fração Trotskista (CI) que divulga todos os autores pós-modernos da moda no campo da teoria ambiental sem fazer uma crítica aprofundada de suas derivações programáticas equivocadas que normalmente apontam para os mesmos eixos: sujeito social (se a classe trabalhadora é ou não estratégica hoje), sujeito político (partido, internacional, etc.) e planejamento democrático da economia. Evidentemente é preciso estudar tudo e tomar sem nenhum bloqueio mental aspectos úteis ou positivos de tais ou quais autores, mas sempre integrá-los a uma estratégia revolucionária de transição socioambiental, que incorpore do marxismo científico inovações teóricas para alimentar o programa e a política de intervenção nas lutas do setor, disputar a direção do movimento e recrutar os melhores militantes para a LIS. Normalmente, essas correntes, embora intervenham nas lutas socioambientais, têm encontrado dificuldades para estruturar grupos permanentes e crescer. Temos uma vantagem relativa como LIS por causa da experiência acumulada no movimento em algumas seções da nossa internacional. Temos a tarefa de sistematizar e socializar essas experiências para que possam ser usadas nas diferentes seções.

A dialética da revolução, da transição e do socialismo

O movimento socioambiental, e os debates que se desenvolvem nesse campo, exigem da LIS e de toda a sua militância o estudo aprofundado desse tema. Isso porque se trata de um ativismo informado, que envolve dimensões científicas, conecta-se com a economia e outras disciplinas, e, se temos o propósito de construir uma tendência orgânica com sólida personalidade ideológica, devemos atribuir grande peso à luta de ideias e estarmos programaticamente preparados. Isso implica, em primeiro lugar, elaborar respostas às questões mais candentes, um programa alternativo, e, ao mesmo tempo, ser capazes de manejar o que poderíamos chamar de a dialética da revolução, da transição e do socialismo, considerando os ritmos desiguais e combinados da luta de classes.

Com esse enquadramento, antes de definir coordenadas programáticas específicas no terreno socioambiental, queremos apresentar algumas questões centrais:

1.      O programa de transição que defendemos propõe o percurso que faz a ponte entre a superação do capitalismo e a construção do socialismo. Assim, definimos medidas de reorganização integral da economia, das relações sociais, do sistema político e da interação com a natureza não humana como horizonte estratégico. Em outras palavras: traçamos os contornos do mundo pelo qual lutamos.

2.      Entretanto, nessa transição haverá luta de classes, revoluções, contrarrevoluções e cenários incertos que exigem flexibilidade tática diante de determinados temas.

Vejamos alguns exemplos de debates existentes em diversas regiões do mundo:

·     Energia nuclear e sua utilização: nosso horizonte estratégico aponta para abrir mão desse vetor energético, tendo em vista a periculosidade da gestão dos resíduos radioativos, o alto custo de construção das usinas e sua vida útil limitada. No entanto, na transição ao socialismo, além do uso da energia nuclear para fins medicinais ou energéticos, afirmamos o direito inalienável dos trabalhadores e povos em revolução de recorrer à energia nuclear como recurso de autodefesa militar.

·         Exploração do lítio e sua utilização energética: não descartamos o uso do lítio como insumo para um vetor de energia não poluente numa transição energética orientada a outra lógica de produção, planificada e voltada às necessidades sociais majoritárias (não carros elétricos de elite, mas ambulâncias, transporte público e similares), com base na pesquisa de formas de aproveitamento que minimizem os custos ambientais e garantam debate social e plurinacional democrático, incluindo as comunidades afetadas. Entretanto, nas condições atuais do capitalismo extrativista, propomos declarar o lítio bem comum e patrimônio social não explorável, já que hoje ele é uma commoditie em disputa intercapitalista, utilizada como matéria-prima para indústrias que produzem mercadorias e valor de troca segundo os padrões da obsolescência programada, em condições de saque imperialista e transformando os territórios em zonas de sacrifício com métodos de extração altamente contaminantes, não por serem os únicos, mas por serem os mais rentáveis.

Ou seja, em ambos os casos, nosso programa considera o impacto socioambiental do uso produtivo da energia nuclear e do lítio, mas, ao mesmo tempo, mantém a elasticidade tática necessária para subordinar as decisões aos ritmos e necessidades da revolução e da luta de classes.

Dito isso, enumeramos algumas diretrizes programáticas que respondem às questões do setor, complementando o programa do BDI nº 1 e especificando aspectos que contribuem ao debate:

·         Pela exigência da declaração imediata de Emergência Socioambientalem nossos países, dirigida aos governos capitalistas de plantão. Declarar como bens comuns de patrimônio social inalienável os pântanos, florestas, selvas, cordilheiras e outros ecossistemas fundamentais para a saúde socioambiental.

·         Transição energética para fontes limpas e renováveis, baseada na expropriação das indústrias de hidrocarbonetos sob controle dos trabalhadores e numa nova matriz energética não petroleodependente, diversa e combinando múltiplos vetores (eólico, solar, mareomotriz etc.).

·         Reconversão profissional e trabalhista de todos os trabalhadores das indústrias afetadas, com garantia de continuidade salarial e manutenção de todos os direitos anteriores.

·         Proibição do fracking, do agronegócio, da megamineração e da urbanização especulativa. Reorganização produtiva voltada às necessidades sociais reais, com base em um planejamento democrático com participação direta da classe trabalhadora.

·         Outro modelo alimentar, pautado em parâmetros agroecológicos, sem transgênicos nem agrotóxicos, garantindo a alimentação como direito social, suficiente, saudável e acessível às maiorias. Questionar o modelo agropecuário industrial capitalista, explorador e poluente, que maltrata a natureza vegetal e animal. Proibir granjas industriais e confinamentos de gado (feedlots). Reforma agrária integral, com expropriação sem indenização dos latifundiários e conglomerados agroindustriais.

·         Garantia do uso dos serviços públicos como direito social, começando pelo transporte estatal sob controle social de trabalhadores e usuários. Estatização de todas as empresas privatizadas e ampliação de sua infraestrutura como forma adicional de desestimular o transporte individual.

·         Reorganização dos sistemas de saúde em escala mundial, unificando toda a infraestrutura pública e privada em um único sistema estatal sob controle dos trabalhadores da saúde e comitês de usuários. Reforço orçamentário com base na anulação das dívidas com o FMI e outros organismos financeiros internacionais.

·         Redução da jornada de trabalhoedistribuição das horas de trabalho entre toda a força de trabalho disponível, incorporando tecnologia não para substituir pessoas por máquinas, mas para aliviar a carga coletiva do trabalho.

·         Eliminação da indústria de embalagens e redução de resíduos com base na separação na origem, reciclagem e educação socioambiental pública em todos os níveis escolares.

·         Proibição da indústria publicitária capitalista, que estimula o consumo artificial e desinforma a população. Substituí-la pelo direito social à informação pública. Democratização dos meios de comunicação, com propriedade estatal e controle social.

·         Mecanismos de consulta popular vinculante, para que os povos decidam sobre o desenvolvimento de indústrias potencialmente poluentes. Aplicação do princípio da precaução do direito ambiental: toda atividade produtiva que possa causar impacto socioambiental deve ser suspensa e submetida a investigação e debate social.

·         Orçamento para remediação ambiental e preservação de espécies, florestas nativas e outros bens comuns da natureza, considerados patrimônio da humanidade, financiado pela expropriação dos ativos das empresas poluidoras.

·         Abertura das fronteiras às correntes migratórias climáticas.

Esses eixos são referenciais de ação, que podem ser combinados e aplicados em cada país conforme as particularidades de sua realidade nacional desigual. Tudo isso articulado, em essência, à luta por governos operários e populares, no caminho do socialismo regional e mundial.É um piso mínimo de unidade política e programática para a atuação internacional da LIS.

Fake news antimarxistas: refutando preconceitos e mitos

Embora o centro do desenvolvimento teórico de Marx (e até de Engels) não tenha sido a questão ambiental, eles deixaram uma série de coordenadas ou pistas metodológicas, hipóteses a serem desenvolvidas, com enorme potencial para pensar a atualidade do século XXI:

·         Em O Capital, Marx afirma que esse sistema, em sua lógica de acumulação e competição, “exaure tendencialmente as duas fontes de criação de riqueza social”. Ele se refere ao trabalho humano e à natureza.[5]

·         Além disso, ele aponta que o capitalismo, ao instaurar uma dinâmica que persegue exclusivamente a acumulação privada, “produz por produzir” (productivismo), e que, portanto, o capital “tem como fim o próprio capital (a acumulação)”. Por isso, altera profundamente a relação da humanidade com seu entorno, com a natureza. Marx diz que isso “quebra ou fratura o metabolismo entre humanidade e natureza”.

·         Um objetivo, portanto, seria recuperar a gestão racional desse intercâmbio fraturado, a partir de uma reorganização da produção, distribuição e consumo sociais.[6]

Essas três definições, exaustão das duas fontes, fratura do metabolismo e gestão racional, na nossa opinião, devem ser o ponto de partida para pensar de forma criativa, inovadora e corajosa todas as consequências do aquecimento global e da alteração geral das condições de vida no planeta, assim como os impactos da forma particular do capitalismo imperialista em regiões do mundo, como a América Latina, em sua expressão extrativista.

Também é necessário nos diferenciar de toda a experiência stalinista e burocrática, profundamente contaminante e desastrosa. E explicar por que, então, não basta socializar os meios de produção e colocar a classe trabalhadora para controlar tudo: existem outros parâmetros a serem considerados.

De um lado, a concepção de “herança”, como a chamamos, é equivocada e pode levar a posições até reacionárias. Concretamente, a ideia de que a tarefa da classe trabalhadora e dos socialistas revolucionários consiste apenas em expropriar a burguesia, apropriar-se do desenvolvimento das forças produtivas existentes e simplesmente mudar o conteúdo social de sua administração e gestão, é limitada. Porque, na decadência e sobrevida histórica do capitalismo, para contrabalançar a queda tendencial da taxa de lucro, ele não apenas exaure as duas fontes, mas também as explora, depreda e destrói. Todo o uso da ciência a serviço desse objetivo anti-social e anti-humano, a busca pela acumulação de capital, está na raiz de todos os desastres socioambientais. Nesse ponto, uma chave é afirmar categoricamente que nem todas as tecnologias são “neutras” (ou seja, que seus efeitos dependem da classe social que as administra), nem todos os ramos da produção são úteis ou podem ser reaproveitados em uma transição para o socialismo:

·         Um objetivo essencial do resgate socioambiental na transição ao socialismo é reduzir radicalmente o volume material do que é produzido e transportado. Isso não implica privação ou auto-limitação social. A anarquia do capital superproduz, incentivando o hiperconsumo através da publicidade distorcida e da obsolescência programada, o método de fabricar bens com prazo de validade curto para reiniciar rapidamente o ciclo. Essa lógica de produzir valores de troca, coisas para vender e gerar mais-valia, não é sustentável do ponto de vista ecológico. O planejamento democrático da produção e distribuição de valores de uso, de bens socialmente necessários, transforma toda a equação socioambiental e é o ponto de partida para “restabelecer o metabolismo fraturado”. Isso implica produzir e transportar menos.

·         É necessário eliminar ramos inteiros da produção socialmente inúteis e ecologicamente desastrosos: megamineração, fracking, agronegócio, publicidade comercial capitalista, entre outros. Isso não significa “expropriar e colocar sob controle operário”, mas sim suprimir, abolir, com reconversão profissional e trabalhista dos trabalhadores envolvidos. Isso é fundamental.

No mesmo sentido, é preciso enfrentar debates que são de vanguarda sobre distorções produzidas pelo capitalismo, como a agropecuária industrial, seus efeitos poluentes, os danos à saúde e os níveis brutais de exploração humana e animal. Sem cair em unilateralismos de coletivos militantes de vanguarda, é preciso encarar um problema real: a dieta humana em escala global e o que a indústria capitalista de alimentos produz, que também exige análise e soluções revolucionárias.

Nosso ponto de vista é atravessado por uma variável decisiva: todas essas medidas transicionaise estratégicas, para reorganizar a produção garantindo o socialmente necessário de forma sustentável, serão mediadas pelo processo da luta de classes, pelo seu desenvolvimento desigual e pelas necessidades transitórias da revolução mundial. Mas, como estratégia, defendemos integrar o desafio socioambiental como centro das tarefas de reorganização socialista da civilização.

Nossa orientação: linha de frente nas lutas, fortalecer a batalha ideológica e construir organização militante

Como Marx dizia, o capitalismo destrói a força de trabalho humana e a natureza.[7] Isso último significa, concretamente, um plano de guerra contra a maioria social, que provoca reação, mobilização e novos processos. A frente socioambiental é uma janela de oportunidade para nossa intervenção e construção militante. Há uma sensibilidade socioambiental muito ampla, com um componente positivo de questionamento anticapitalista, predisposição à unidade internacional das lutas e forte vocação pela democracia para decidir e ação direta. Ao mesmo tempo, é um movimento heterogêneo, atravessado por lutas ideológicas e disputas sobre saídas estratégicas. Para ganhar autoridade na luta pela direção do movimento, é preciso ser linha de frente nas lutas, mas também ter solidez teórica, programática e política, para vencer a batalha de ideias e recrutar os melhores ativistas do movimento.

A LIS tem experiência em várias de suas seções na participação desse movimento, com acertos, erros e elaboração programática. Precisamos ser uma força política nesse processo, que conecte com as preocupações centrais do melhor do ativismo, oferecendo respostas a partir daí e avançando na necessidade de uma transição revolucionária que supere o capitalismo depredador.

Lógico que o mundo não é homogêneo; há realidades diversas dependendo da região do planeta, do peso das correntes ideológicas e políticas, e do grau de desenvolvimento das nossas organizações em cada país. No entanto, utilizar a LIS nesse tema, a partir de suas experiências mais avançadas, pode nos permitir avançar em todo o mundo. Há um potencial de recrutamento e de atração de jovens ativistas para nossas organizações e nosso programa, praticamente em todos os lugares. A condição para conectar-se com esse público é partir de suas necessidades e níveis de consciência imediatos. Isso exige política e programa para o setor, ao mesmo tempo em que se evita dois erros unilaterais equivalentes:

·         O propagandismo abstrato do socialismo em geral

·         Ou, seu polo antagônico: o sindicalismo ecologista de programa mínimo

Devemos militar com a dialética do programa transicional: do imediato à conexão com a saída estratégica. Dentro desse quadro, propomos como esquema de medidas de orientação para a LIS nesta frente de ação militante:

·         Intervir nas lutas do setor, levantando um programa de transição, partindo de ser os melhores ativistas em cada reivindicação justa, e ao mesmo tempo fazer propaganda do nosso socialismo ecossocialista global, revolucionário e internacionalista.

·         Participar do debate ideológico existente no movimento, em fóruns, cúpulas, contra cúpulas, conferências e eventos com muitos ativistas interessados. Também organizar nossos próprios eventos de debate para atrair a vanguarda.

·         Construir colaterais ou agrupamentos no setor ligados e dirigidos por nossas seções em cada país como tática para agrupar com nossa política e ganhar militantes para a estratégia global de nossa internacional. Há algum tempo, a LIS utiliza taticamente, através de agrupamentos, a identidade “ecossocialista” com resultados muito positivos na disputa. Entretanto, se em um país onde atuam organizações que estão em processo de integração à LIS e vêm atuando com outra variante tática, isso também será válido.

·         Embora o foco principal seja ganhar a juventude no movimento e levar nossas posições ao movimento estudantil, também é necessário estudar experiências e elaborar política para levar nossa política ao movimento operário, combatendo as burocracias que funcionam como correia de transmissão do eco-fascismo negacionista ou das variantes reformistas do capitalismo verde.

·         Elaborar um Manifesto da LIS sobre o tema, para popularizar nossas posições.

·         Desenvolver um plano de propaganda, com cursos, palestras, jornadas e seminários, para especializar quadros e politizar sobre essa temática, começando por publicar artigos de forma mais regular na web e na revista.

·         Trabalhar para criar uma Comissão Socioambiental da LIS.

Aprovado pelo III Congresso Mundial da LIS


[1] Marx, Karl (2003), O Capital, Volume III, Siglo XXI Editores.

[2] http://www.igbp.net/download/18.950c2fa1495db7081e25bf/1433835587044/IGBP-AR_2014-web.pdf

[3] Latouche. S. (2011), A hora do decrescimento, Octaedro.

[4] Broffoni, F. (2020), Extinção, Sudamericana

[5] Marx, C. (2013), O Capital, Volume III, Biblioteca do Pensamento Socialista.

[6] Idem

[7] Marx, Karl (2003), O Capital, Volume I, Siglo XXI Editores.