Por Hassan Jan
Em 19 de março, as delegações diplomáticas dos EUA e da China, lideradas por altos funcionários de ambos os países, direcionaram duras críticas às políticas uns dos outros durante a primeira reunião de autoridades estadunidenses e chinesas desde que Joe Biden chegou ao poder. As autoridades estadunidenses, como de costume, levantaram questões sobre Hong Kong, Taiwan, Xinjiang e a “coerção econômica” de seus aliados com a China. Acusaram a China de ameaçar as regras da ordem mundial. Por sua vez, a China acusou os EUA de usarem sua “força militar e hegemonia financeira para exercer larga jurisdição e reprimir outros países”. A China chamou os Estados Unidos de hipócritas nos direitos humanos e os criticou pelos maus-tratos que infligem aos negros. Todas essas duras discussões estavam sendo transmitidas pela mídia. Ambas as partes pareciam tentar um ótimo desempenho diante de seu público nacional. Mas, de acordo com o relato de uma autoridade norte-americana, assim que a mídia saiu da sala, ambas as partes começaram a trabalhar em um ambiente tranquilo. Essas trocas se tornaram a norma no passado recente devido às complexas relações entre os Estados Unidos e a China. O fato de que ambos os lados trocaram fogo na frente das câmeras significa a natureza emaranhada de suas relações econômicas que agravaram a situação, onde nenhum pode arriscar um conflito aberto e, ao mesmo tempo, se calar sobre os “excessos” do outro.
Nos últimos anos, com sua crescente influência econômica e como uma das principais potências econômicas mundiais, a China tem se afirmado cada vez mais no cenário mundial. Um campo após o outro, está em rota de colisão com os EUA. As relações já estavam tensas durante a presidência de Barack Obama mas, com Trump na Casa Branca, despencaram ainda mais para uma baixa de todos os tempos, com ambos os partidos impondo tarifas, resultando em uma guerra comercial que é um mau presságio para uma crise já existente – concentrada na economia mundial. Da mesma forma, como parte de um conflito diplomático prolongado, a mídia ocidental, aliada aos Estados Unidos, está direcionando e manipulando especialmente as notícias sobre as situações em Hong Kong e Xinjiang.
Em 1978, quando os Estados Unidos e a China estabeleceram relações diplomáticas, a economia chinesa era de US$ 149 bilhões, enquanto o PIB dos Estados Unidos era de US$ 2,3 trilhões, mas com a subsequente abertura da economia, a China cresceu e hoje atinge a impressionante marca de US$ 15,42 trilhões, perdendo apenas para os EUA. Esta transformação, supostamente “milagrosa”, só foi possível pela venda de mão de obra chinesa barata especializada – construída durante as três décadas de uma economia planejada centralizada no período maoísta e que forneceu uma base sólida para o “crescimento” capitalista subsequente. A China desmantelou gradualmente a economia planejada centralizada (a força vital de uma economia socialista) a ponto de o atual presidente Xi Jinping declarar abertamente que a China não deve voltar ao antigo caminho da economia planejada.
Com o rápido crescimento de sua economia, a China ultrapassou o Japão e em 2010 tornou-se a 2ª maior economia do mundo. Com o crescimento do poder econômico, veio a assertividade política, diplomática e geoestratégica. O crescimento capitalista da China chega no momento em que o capitalismo global está em sua crise orgânica terminal. A ex-beligerância militar do imperialismo norte-americano foi afetada por seu declínio econômico. Estão se retirando do Oriente Médio, Afeganistão e a chamada liderança global da América está sendo eclipsada. Potências regionais estão levantando suas cabeças em todos os lugares.
Em tal cenário, os americanos se esforçam para preservar sua “liderança mundial”, o domínio global histórico e a chamada regra da ordem liberal. É uma rivalidade multifacetada e complexa que tem pouca semelhança com a guerra fria que os Estados Unidos travaram com a ex-União Soviética, dado o emaranhamento das duas economias. Recentemente, a demonstração mais pronunciada desse conflito pode ser vista na violenta guerra comercial entre os dois. O governo dos Estados Unidos têm acusado a China de “práticas comerciais injustas” e roubo de propriedade intelectual. Donald Trump chamou a China de “manipuladora de moeda” e criticou por sua prática de “transferência forçada de tecnologia”.
Ao longo dos anos, a China atraiu empresas estrangeiras para os mercados chineses em troca de transferência de tecnologia. O acesso à tecnologia moderna tem sido a chave para o recente desenvolvimento econômico chinês. Isso ajudou a modernizar sua economia e aumentar a produtividade. No entanto, a forma como adquiriram tecnologias modernas é uma anátema para a chamada regra da ordem liberal, uma vez que a preservação dos direitos de propriedade intelectual é a pedra angular do sistema de propriedade privada dos meios de produção. É por isso que o sistema capitalista zela pelos direitos de propriedade intelectual. Na verdade, todas as tecnologias são resultado do trabalho humano ao longo de milhares de anos. Sua conversão em propriedade privada é uma ideia ridícula que visa aumentar a riqueza e os lucros de capitalistas individuais ou grupos de capitalistas. A prática chinesa de roubo de tecnologia ou transferência forçada de tecnologia é a única forma da China capitalista ter acesso à tecnologia moderna, já que os países e empresas capitalistas guardam zelosamente suas tecnologias, que são a fonte de toda a sua riqueza. Nunca compartilham sua riqueza com ninguém.
A guerra comercial iniciada pelo ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, levou a ações recíprocas da China, colocando em risco a cadeia de abastecimento global e, em última instância, toda a economia mundial. As tarifas impostas às exportações chinesas para os EUA tinham o objetivo de reativar a produção norte-americana, realocar a produção industrial e reduzir o astronômico déficit comercial com a China. Mas não alcançaram nenhum desses objetivos. De acordo com a análise do jornal The Wall Street, “a guerra comercial do presidente Trump contra a China não atingiu o objetivo central de reverter o declínio da indústria de manufatura nos Estados Unidos, mostram os dados econômicos, apesar das tarifas de milhões de dólares aos produtos chineses com o objetivo de desestimular as importações”.
“As tarifas conseguiram reduzir o déficit comercial com a China em 2019, mas o desequilíbrio comercial geral dos EUA foi maior do que nunca naquele ano e continuou a aumentar, atingindo um recorde de US$ 84 bilhões em agosto, à medida que os importadores norte-americanos buscaram fontes mais baratas como Vietnã, México e outros países. O déficit comercial com a China também aumentou em meio à pandemia e voltou ao ponto em que estava no início do governo Trump.” (25/10/2020).
Na verdade, essas medidas realmente ameaçavam a ordem “liberal” global e causaram a desaceleração da economia mundial. As medidas de olho por olho prejudicam as economias dos Estados Unidos e da China. De acordo com o Instituto Brookings, os EUA já haviam perdido 300 mil empregos e 0,3% de seu PIB em 2019. Em última análise, os EUA e a China assinaram uma trégua em janeiro de 2020 na qual a China concordou em comprar US$ 200 bilhões em produtos americanos nos próximos anos, proteger a propriedade intelectual e interromper as transferências forçadas de tecnologia.
Se os Estados Unidos foram incapazes de atingir um único objetivo de sua guerra comercial com a China, então surge a questão de por que começar tal guerra. Os objetivos dos EUA de realocar a produção e interromper as transferências forçadas de tecnologia da China são impossíveis de serem alcançadas. A rivalidade entre os dois é tão complexa e ao mesmo tempo tão intensa que não fazem ideia de como montar este quebra-cabeças. Qualquer movimento errado de qualquer uma das partes abriria as comportas para a devastação em escala global. No atual sistema socioeconômico, não há solução pacífica para essas disputas. Até agora, todas as suas medidas equivalem à loucura e estupidez.
As rivalidades também podem ser vistas no realinhamento geopolítico. O Paquistão faz parte da ambiciosa iniciativa de rota da seda chinesa conhecida como CPEC (Corredor Econômico China-Paquistão). Até recentemente, a mídia do Paquistão estava cheia de notícias e análises dos “benefícios” e “milagres” econômicos desse projeto. No entanto, com a chegada do governo Imran Khan em 2018, a economia do Paquistão caiu ainda mais em uma crise profunda e teve que recorrer ao FMI (Estados Unidos). O Paquistão recebeu pacotes de resgate. O país teve que se realinhar aos Estados Unidos, o que gerou um intenso realinhamento político na política interna. O Nepal é outro exemplo da rivalidade onde a China está espalhando seus tentáculos econômicos, enquanto a Índia (um aliado americano) também está lutando para ganhar influência. Há poucos dias, a China e o Irã assinaram um acordo de cooperação de 25 anos que impulsionará o comércio bilateral, o envolvimento militar e o investimento na economia iraniana. A China apoia veementemente o regime do golpe militar no Mianmar, onde o governo de Aung San Suchi, representante da ordem liberal, foi recentemente derrubado pelos poderosos militares do país. Suas guerras indiretas são uma fonte constante de instabilidade e crise nesses Estados.
Ultimamente, as tensões entre os EUA e a China também aumentaram no mar da China meridional. Segundo estimativas, US$ 3,37 trilhões do comércio mundial passam anualmente por essa hidrovia estratégica. A China detém 90% dos recursos do mar, enquanto Brunei, Malásia, Filipinas, Taiwan e Vietnã também reivindicam parte deles. A China também reivindica a propriedade de diferentes ilhas. Construiu ilhas artificiais e instalou equipamento militar nelas. Os EUA rejeitam as reivindicações chinesas sobre os recursos do Mar da China Meridional. Os Estados Unidos enviam regularmente navios de guerra ao mar para demonstrar a liberdade de navegação lá. Por vezes, os navios de guerra estadunidenses chegaram perto demais dos navios de guerra chineses no mar, arriscando um confronto mortal.
Recentemente, muitos analistas burgueses chamaram a rivalidade entre os Estados Unidos e a China de uma nova Guerra Fria. Mas essa analogia tem seus limites. Durante a Guerra Fria com a União Soviética, os EUA conseguiram unir todo o mundo capitalista contra o “Império do Mal”. A União Soviética tinha um sistema econômico diametralmente oposto ao de todo o mundo capitalista. Quase não houve contato econômico entre a União Soviética e os Estados Unidos. Em contraste, desde a abertura da economia chinesa em 1978, a China se transformou em uma grande economia capitalista cujos líderes descartam abertamente a economia planejada, embora os líderes da “ordem liberal” não gostem do modelo capitalista chinês porque ele não é liberal o suficiente, é por isso que escondem sua ganância selvagem por lucro sob a fina camada de termos hipócritas de violações dos direitos humanos, autoritarismo, ditadura, etc. Hoje, os Estados Unidos e a China têm profunda interpenetração econômica. Os Estados Unidos oferecem um grande mercado para produtos chineses. Milhares de empresas estadunidenses e chinesas investiram nas economias umas das outras. Suas economias estão emaranhadas em milhares de fios. A ideia estúpida do governo Trump de “dissociação” econômica é uma utopia. Não apenas os EUA, mas a economia chinesa também está emaranhada com o mundo inteiro e faz parte da cadeia de abastecimento global. Eles nunca podem ser desembaraçados ou “desacoplados”. Qualquer movimento desse tipo irá perturbar a cadeia de abastecimento global e a devastação econômica será muito mais desastrosa do que os efeitos combinados de todas as depressões e recessões da história capitalista. Sob o sistema capitalista de propriedade privada dos meios de produção, esse conflito se inflamará com fluxos e refluxos, mas nunca poderá ser extinto. Somente a derrubada do sistema de propriedade privada dos meios de produção (ou das regras da ordem liberal) pode acabar com esses conflitos para sempre.