Argentina: atentado contra Cristina Kirchner e repercussões políticas

Na quinta-feira, 1º de setembro, quando a vice-presidente Cristina Fernandez de Kirchner chegou à sua casa, um homem identificado como Fernando Sabag Montiel apontou uma pistola para sua cabeça e disparou o gatilho. A arma não disparou e Montiel foi preso. O ataque chocou o país e recebeu rejeição quase universal. O governo da Frente de Todos convocou no dia seguinte uma mobilização na Plaza de Mayo, buscando usar o evento para gerar apoio político que vinha perdendo devido ao profundo ajuste que vem aplicando contra os trabalhadores. Compartilhamos uma nota de análise de Guillermo Pacagnini, o comunicado do MST e o comunicado da FIT Unidade.

Marcha para a Praça. O uso político do ataque

Por Guillermo Pacagnini

O ataque contra a vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner causou choque e forte rejeição entre trabalhadores e setores populares. Esse sentimento lógico e de preocupação foi usado pelo governo para convocar uma mobilização na Plaza de Mayo ontem, sexta-feira, pedindo a unidade nacional e a paz social, enquanto um forte ajuste está sendo implementado nas áreas abaixo.

Do nosso partido, repudiamos de imediato o ataque por meio de declarações de nossos dirigentes e de uma declaração da direção nacional, exigindo uma investigação minuciosa para esclarecer este fato grave. Também rejeitamos a hipocrisia do Juntos por el Cambio (Juntos pela Mudança) e as campanhas midiáticas de toda a direita que possibilitam essas e outras ações reacionárias.

Da mesma forma, nos manifestamos por meio de declaração da FIT-Unidade em termos semelhantes.

Por que não participamos

Do MST, junto com grande parte da esquerda, convocamos a não comparecer à marcha convocada pelo presidente, a Frente de Todos e endossada pela burocracia sindical oficial. Porque o movimento foi baseado na revolta popular, mas com a estratégia indisfarçável de canalizar essa rejeição para fortalecer o governo em meio à aplicação de um duro plano de ajuste ordenado pelo FMI.

Por outro lado, se utilizou o atentado que falhou para corroborar a tese da desestabilização, a democracia em perigo e outras afirmações enganadoras, habitualmente utilizada pelos governos em momentos de crise aguda e quando necessitam recompor sua base social, apelando para o fantasma da direita. Quando hoje é o próprio governo, de mãos dadas com Massa-Rubinstein e com o aval explícito de CFK e seu setor, que tomou em suas mãos a agenda da direita para aplicar abertamente a receita do FMI.

A maioria do sindicalismo combativo de esquerda concordou em repudiar o ataque, mas sem comparecer ao ato da Frente de Todos. A exceção, mais uma vez com extremo oportunismo, foi o Novo MAS com Manuela Castañeira, que desfilou e acabou sendo um vagão, mas “com bandeiras próprias”.

O governo decretou feriado nacional para facilitar a convocação em diferentes partes do país. E embora o repúdio ao ataque tenha sido geral e massivo, a marcha foi claramente hegemonizada pelo peronismo, com inegável matiz político-partidário e eleitoral, com o slogan “Cristina Presidente” sendo promovido de forma central.

Autoridades do governo como o chefe de gabinete Manzur, prefeitos, governadores (incluindo Gildo Insfrán), líderes sociais, líderes de direitos humanos e sindicalistas relacionados, com o superministro Massa à frente, estiveram presentes no palco. No interior de La Rosada, realizou-se uma reunião de empresários, governantes, Igrejas e dirigentes sindicais, onde se delineou a declaração que depois foi lida na praça apelando à unidade nacional. Um encontro com aroma de pacto social de forma e conteúdo, onde se chamava à harmonia, pela unidade entre quem elaborou o acordo com os usurários, quem o toma na pá, quem aplica o ajuste e… quem de nós que pagamos os pratos quebrados da crise.

Mais uma vez, em momentos de crise, pedem a sustentação da governabilidade com base nos planos de ajuste. Fomentar a unidade entre quem sofre e quem a aplica, convocando os trabalhadores e o povo à harmonia com os partidos capitalistas e com as entidades empresariais responsáveis ​​pela inflação, pela precarização do emprego e pela entrega do país.

Ao lado do presidente da UIA, o empresário explorador Daniel Funes de Rioja, foi a direção das centrais sindicais que nem sequer mencionou os aumentos tarifários, os cortes orçamentários para saúde e educação e planos sociais e as medidas de ajuste do governo. Nota importante: a burocracia da CGT, que vinha ameaçando greve para segunda-feira, colocou o violino na bolsa, fez parte do ato e nem uma palavra sobre luta por salário.

O que é necessário, além de continuar a exigir uma investigação completa do ataque contra o CFK, é mobilizar, mas não para pedir a unidade com os patrões e os ajustadores, e sim para parar o plano anti trabalhador do governo e do Fundo Monetário Internacional.

Documento lido na Plaza de Mayo

Diante da tentativa de assassinato da principal líder política do país, ninguém que defende a República pode ficar calado ou colocar suas diferenças ideológicas diante do repúdio unânime que essa ação traz.

Não há como relativizar ou minimizar uma tentativa de assassinato. A solidariedade e o repúdio de líderes de toda a América Latina, Estados Unidos, Europa e Papa Francisco mostram que o mundo compreende plenamente a gravidade do que aconteceu. O movimento sindical organizado, entidades empresariais, comunidades religiosas, associações esportivas e outras entidades intermediárias do país se expressaram na mesma linha. Também grande parte da liderança política nacional, a quem agradecemos por entender que a convivência democrática deve prevalecer sobre qualquer desacordo político.

O “limite” de que tanto ouvimos falar nas últimas horas não foi ultrapassado ontem. Se não queremos que a intolerância e a violência política destruam o consenso democrático que construímos de 1983 até hoje, devemos contextualizar o que aconteceu ontem à noite contra a vice-presidente Cristina Kirchner: por vários anos um pequeno setor da liderança política e seus apoiadores da mídia vem repetindo um discurso de ódio, de negação do outro, de estigmatização, de criminalização de qualquer líder popular ou relacionado ao peronismo, e até mesmo de qualquer simpatizante. Todos já vimos mobilizações em que sacos mortuários, caixões ou guilhotinas desfilaram pelas praças mais importantes da Capital Federal.

A legitimação de discursos extremistas, de apelos à agressão, de declarações que negam a legitimidade democrática do adversário político não é inocente nem gratuita. Ninguém é individualmente responsável pelas ações dos outros, mas aqueles que deram margem ao discurso de ódio devem refletir sobre como colaboraram para nos levar a essa situação.

A vida democrática é incompatível com as ações de minorias violentas que procuram levar o resto da sociedade pelo nariz, ou forçar uma determinada liderança a assumir posições cada vez mais sectárias para satisfazer essa suposta clientela eleitoral.

A convivência no quadro de uma ordem democrática é também o limiar das condições necessárias ao desenvolvimento dos nossos filhos e filhas. O dano que as ações e palavras violentas produzem na mente de meninos e meninas é uma condenação ao futuro da Argentina.

O povo argentino está comovido, chocado com o ocorrido, inclusive milhões que não simpatizam com Cristina ou com o peronismo. É em homenagem a todos os nossos compatriotas que fazemos este apelo à unidade nacional, mas não a qualquer preço: ódio não.

Comunicado. Diante do atentado a CFK e a mobilização de hoje

Do nosso partido repudiamos o atentado que a vice-presidente do país sofreu ontem à noite, como demos a conhecer através de nossas referências públicas assim que o evento aconteceu. E exigimos que haja uma investigação minuciosa e esclarecimento do que aconteceu. É evidente que o clima e a tensão política que existe em nosso país, e o discurso de ódio que é incentivado por setores do poder político e econômico, possibilitam esse tipo de resultado. Por isso, repudiamos também a hipocrisia dos diferentes dirigentes do Juntos por el Cambio que agora olham para o outro lado como se não tivessem contribuído para esta situação que vivemos hoje.

Ao mesmo tempo em que repudiamos o ataque, não compartilhamos o uso político feito pelo presidente Alberto Fernández, pela Frente de Todos e pela burocracia sindical ligada ao governo. Que agora eles convoquem uma marcha até a Plaza de Mayo, sob o apelo da unidade e pedindo a paz social. Buscando assim usar o ataque para fortalecer o projeto do governo, e assim ajudar o ajuste a passar, que eles promovem de mãos dadas com o FMI. Ajuste que a burocracia sindical vem permitindo aplicar.

Da esquerda, enfrentamos esse fato com coerência: repudiamos o ataque, pedimos esclarecimentos, rejeitamos a hipocrisia da oposição de direita e não participamos de uma marcha que, por trás do tema do ataque, busca ao mesmo tempo a unidade nacional com os ajustadores e executores do acordo com o Fundo, assim como o governo vem fazendo hoje por meio de Massa e com o apoio de toda a Frente de Todos.

Comitê Executivo do MST na FIT-Unidade

Declaração. A FIT-U repudia o atentado contra a vicepresidenta

A Frente de Esquerda Unidade repudia o atentado sofrido por Cristina Kirchner na noite de quinta-feira e exige seu esclarecimento imediato.

Não é por acaso que, segundo informações públicas, a pessoa que queria cometer o crime fez parte da campanha para estigmatizar e criminalizar as lutas populares e o movimento piquetero como parte de uma campanha midiática que incluiu a extrema direita de Milei -que não coincidentemente fez um silêncio notável em face deste ataque- ao Juntos por el Cambio e ao próprio partido no poder. Esta campanha promove a repressão contra as lutas dos trabalhadores e o redobramento das medidas de ajuste.

Nosso repúdio a este ataque reacionário não implica qualquer solidariedade política com um governo que está realizando um profundo ajuste contra os trabalhadores sob o mandato do Fundo Monetário Internacional. Rejeitamos os apelos de “unidade” e “concórdia” com as câmaras empresariais que promovem o ajuste e a pulverização salarial, e com os partidos políticos do ajuste. É por isso que decidimos não marchar no dia de hoje.

A partir da FIT-U vamos continuar defendendo as liberdades democráticas contra qualquer ataque reacionário ou fascista, contra o aparelho repressivo do Estado e apoiando todas e cada uma das lutas contra o ajuste, por salários, moradia e em defesa da saúde e educação pública.

Frente de Esquerda e Trabalhadores Unidade