Venezuela: por uma onda operária e popular contra a corrupção

Por Marea Socialista

Os últimos acontecimentos de megacorrupção que vieram à tona, escandalizando todo o país, com a prisão de altos funcionários militantes do PSUV e membros da comitiva do agora ex-ministro Tarek El Aissami, entre outros casos, não são uma exceção. É uma mostra do modo de apropriação e acumulação de capital por parte da burocracia político-militar e da lumpen-burguesia* que impera no Estado venezuelano.

A V República, depois de alguns poucos anos em que prometia uma transição socialista, em que importantes reformas foram feitas e o povo obteve valiosas conquistas sociais; acabou reproduzindo e até multiplicando as mazelas da IV, acrescentando outras novas. Isso, ocorreu por não substituir o modelo capitalista e, ainda por cima, gerar uma acentuada degeneração burocrática com características autoritárias. Se multiplicou, gerando metástase, e faz hoje brotar com notável intensidade sua podridão.

As prisões que vêm ocorrendo não são parte de uma verdadeira “cruzada anticorrupção”, mas de um “ajuste de contas” e disputas internas pelo poder e pelo controle dos negócios ilícitos, além de produzir-se praticamente em um marco pré-eleitoral, no qual o Governo busca sua reacomodação, para assegurar a reeleição do Presidente Maduro e a continuidade da casta dominante. Cada vez que há alguma briga para ser colocada “onde houver”, algumas pessoas importantes são presas e seus mais próximos colaboradores ou cúmplices. É a luta pelo controle da renda nacional e uma forma de que o sistema tem para se depurar e aguentar a pressão.

As lutas dos trabalhadores e do povo são crescentes e, embora ainda não concretizem suas reivindicações, repercutem na superestrutura política. Especialmente, quando a redução da renda diminui o saque realizado pelos corruptos que disputam os recursos do povo, que o tem para satisfazer suas necessidades básicas.

Nesta ocasião, com a operação «anticorrupção», tem caído também integrantes dos Governos Regionais e dos setores militar e judicial, junto com o Ministro do Petróleo, de Industrias e Produção Nacional, Vice-presidente para a Área Econômica, Vicepresidente da República Bolivariana da Venezuela, Governador do Estado Aragua, Ministro das Relações Interiores e Justiça, e um dos maiores dirigentes do PSUV. Não é qualquer coisa.

Mas a cada tempo se produzem este tipo de confrotações, como aconteceu com Rafáel Ramirez, também ex-Ministro de Energía e Petróleo, e ex-presidente de PDVSA. Em 2017, foram detidos, com acusações de corrupção, Eulogio Del Pino e Nelson Martínez, quando eram Ministro do Petróleo e Presidente da PDVSA, respectivamente, ainda que Nelson Martínez morreu no cárcere em 2018 sem ter sido julgado e Eulogio Del Pino seguiu, preso desde 2017, sem saber da sentença (o que equivale a estar sequestrado).

As remoções, perseguissões e prisões são parte das colisões internas no aparato do Estado e reflexo da luta de classes. Não se pode dizer que isso aconteceu porque o Governo luta contra a corrupção. Trata-se do contrário, é sua fonte, a corrupção é uma constante… Até que alguém por desavenças, por não fazer a divisão acordada, ou por meter o nariz no terreno do outro, cai em desgraça. Alguns acusam uns aos outros: Rafael Ramírez mostra na imprensa que «operadores de Maduro y Delcy receberam o petróleo na história corrupta». Os demais acusam este.

Segundo o deputado do regime burocrático, Hermann Escarrá, com seus próprios números, afirma que os valores envolvidos na trama de corrupção recentemente revelada somariam 23 bilhões de dólares em diferentes atos irregulares. Mas esta é apenas a espuma que sai da panela podre. E o que resulta ainda mais condenável é que continue acontecendo enquanto se denuncia um bloqueio imperialista e se enfrenta dois anos de pandemia.

Segundo a organização Transparência Venezuela, “mais de 42 bilhões de dólares de patrimônio público venezuelano estão comprometidos em um total de 127 casos de suposta corrupção ou gestão irregular de recursos de Petroleiros da Venezuela, S.A. (PDVSA)”. Isso sem falar em mais “casos gigantescos” de bilhões de dólares que envolvem pessoas que trabalham no Estado e outras que estão fugitivas das autoridades estadunidense. Veja: https://www.aporrea.org/contraloria/n381454.html

Na Venezuela, as economias ilícitas constituem o 21% do Produto Interno Bruto, 1/5 do PIB (cerca de 9,4 bilhões de dólares anuais), dados que sustentam nossa afirmação de que são parte principal do modo de apropriação da burocracia e dos setores de capital associados ou nascidos desses setores. As principais atividades ilegais são tráfico de drogas, contrabando de gasolina e ouro, extorsão nos portos, fraude cambial, comissões e superfaturamento de preços, jogo ilegal, especulação financeira…


Outras fontes dão porcentagens de corrupção mais altas para a Venezuela, como um relatório da Global Financial Integrity de 2017, que indicou que a média mundial de fluxos financeiros ilícitos no mundo, relacionados ao comércio internacional, foi de 18% do comércio total em 2014, estando a Venezuela localizada entre os países com maior percentual, com 56% – cerca de 70 bilhões de dólares, que incluem atividades da economia informal, cifra e percentual superior ao Afeganistão.

Em um estudo global publicado em 2018 pela Transnational Alliance para combater o Comércio Ilícito (TRACIT), que avaliou 84 países em quatro áreas: governo e instituições; transparência e comércio; oferta e demanda; alfândega e infra-estrutura; a Venezuela obteve nota 14 sobre 100, perdendo apenas para Síria (11), Iêmen (12), Líbia (13) e Iraque (13), países que estiveram ou estão em guerra.

Pelos comportamentos e antecedentes conhecidos, e pelos dados internacionais, podemos concluir que, quando se fala da “cruzada anticorrupção”, nada mais resta senão apelar ao provérbio popular “zamuro cuidando da carne”, ou “cachicamo contando o conchúo marroquino”. O povo não deve deixar ser levado pelo engano.

MAREA SOCIALISTA DENUNCIOU O SAQUE PROLONGADO CONTRA O PAÍS E NENHUMA INSTITUIÇÃO FEZ NADA

A Marea Socialista vem denunciando há anos, com o suporte de investigações e estudos, a ocorrência de um colossal desfalque e fuga de capitais na Venezuela de mais de 250 bilhões de dólares, além de um déficit nas contas da PDVSA estimado em um valor superior a 200 bilhões de dólares (o caso recente representa apenas uma fração). Temos afirmado que isso acontece há pelo menos uma década de importações para todo o país e supera os valores de nossa Dívida Externa, bem como supera o valor de vários orçamentos anuais de outros países latino-americanos. Trata-se de um roubo histórico recorde cujo resultado vemos nas misérias vividas pelo povo venezuelano e na diáspora de milhões de emigrantes, somado ao desmantelamento do país.

– Em 27 de fevereiro de 2013 fomos, com um grupo de cidadãs e cidadãos de diferentes organizações, ao Ministério Público para apresentar uma demanda de investigação e sanções pelo saque contra a República e ilícitos cambiários.

http://www.aporrea.org/news/n223911.html

– Em 2014, por meio de um estudo realizado pela Equipe de Investigação Marea Socialista (https://www.aporrea.org/contraloria/n257348.html), mostramos a ocorrência de um grande desvio e fuga de capitais descomunais contra a República, estimado em cerca de 259 milhões de dólares.

– Também em 2014, publicamos um trabalho sobre o pagamento da dívida externa ilegítima e supostamente corrupto do país: https://www.aporrea.org/contraloria/n258820.html

– Em 3 de junho de 2015, fomos com uma comissão formada por vários ex-ministros do presidente Chávez e pelo editor do popular do portal de comunicação Aporrea.org, Gonzalo Gómez, membro da Marea Socialista, com um documento à Controladoria Geral da República (https://www.aporrea.org/contraloria/n271555.html), em nome das e dos participantes no ato público de lançamento da Plataforma para a Auditoria Pública e Cidadã (https://www.aporrea.org/contraloria/a208509.html) para solicitar, ao referido órgão, investigação sobre a ocorrência de suposto desfalque continuado da nação.

Em setembro de 2015, como parte da Plataforma de Auditoria Pública e Cidadã https://www.aporrea.org/contraloria/n271368.html apresentamos um documento ao Conselho Moral Republicano https://www.aporrea.org/ddhh/a214280.html pedindo para investigar e impedir o desvio ou perda de imensas quantidades de recursos da Receita do Petróleo Nacional e das moedas do país.

Em 2017, foi apresentado outro estudo do qual participaram alguns membros do Marea Socialista, intitulado: “Lembrando… O que aconteceu com os dólares do petróleo da Venezuela? Corrupção na PDVSA: apenas a ponta de um iceberg!» https://www.aporrea.org/economia/n314042.html

Nada disso gerou nos anos indicados nem nos anos posteriores qualquer “cruzada anticorrupção”.

A CORRUPÇÃO FAZ TANTO OU MAIS DANO QUE O BLOQUEIO E É MAIS ANTIGA: ROUBA DINHEIRO DOS SALÁRIOS, ARRUÍNA O PAÍS E IMPEDE O BEM-ESTAR DO POVO

Pelo menos desde 2017, o governo vem repetindo a desculpa do bloqueio e das sanções imperialistas contra o país, que sem dúvida causam sérios problemas para nossa economia, para a classe trabalhadora e a população, impondo-lhes privações desumanas; mas pior ainda é, em meio a tudo isso, o efeito agravado causado pela corrupção, que se soma a expropriação de todo o valor do trabalho da classe trabalhadora venezuelana, com uma política antitrabalhista de “salário zero”, que não cobre nem um dia de alimentação e transporte do trabalhador.

Se levarmos em conta que os últimos dados oficiais disponíveis (de 2018) dão conta de uma população ativa de 14,5 milhões de pessoas na Venezuela – dados pouco credíveis, sabendo que a crise econômica e social fez cair o número de emprego e muitas pessoas tiveram que sair do país – só os 23 bilhões de dólares, de que fala Escarrá, seriam suficientes para distribuir entre os trabalhadores venezuelanos (a população ativa trabalhadora) quase 1.600 dólares per capita; cifra que não chega em um ano da soma atual de todos os salários mensais recebidos por um trabalhador com o salário mínimo oficial.

Mas se falarmos do custo da cesta básica (Cesta Básica de alimentação e outros bens e serviços não alimentícios) como referência para o salário mínimo (Art. 91 CRBV que governo e empregadores descumprem e infringem), estimado a mais de 900 dólares por mês na Venezuela, no final de 2022, temos cerca de 475 bilhões de dólares roubados pelo desvio (executado por funcionários e por capitalistas), apenas até 2013, são uma quantia que permitiria cancelar o custo de 527 milhões de salários ao valor de custo da cesta básica, e daria para dividir quase 33 milhões de dólares por pessoa entre toda a população trabalhadora ativa existente. E não estamos contando com o roubo continuado após a data da denúncia. Por isso devemos, entre outras reivindicações, fortalecer a luta por um salário mínimo que cubra o custo da cesta básica prevista no Art. 91 do CRBV, ao invés dos recursos serem sugados pela corrupção.

Para onde foi todo esse dinheiro? Em que ele foi lavado? Quem foram todos os autores de tais saques? Algo tão imenso não poderia passar despercebido por nenhum governo. É por isso que todos estão envolvidos.

AS DENÚNCIAS DE CORRUPÇÃO NÃO FORAM APENAS DESATENDIDAS: OCASIONARAM REPRESSÃO DOS DENUNCIANTES

Daremos alguns exemplos:

Não nos esquecemos o desaparecimento de Alcedo Mora, depois de denunciar corrupção na PDVSA, sem que isso tenha gerado uma investigação oficial efetiva.

São os casos de dois jovens da PDVSA (hoje ex-gerentes) que denunciaram a corrupção e logo foram detidos sob a acusação de fornecer informações confidenciais aos Estados Unidos. Exigimos a revisão de sua causa e a concessão de plena liberdade.

O MS foi impedido de legalizar as eleições e até invadiram uma de nossas dependências. Eles sabotaram eventos com “apagões” e até nos assediaram com “coletivos”. Alguns de nossos líderes foram presos em algum momento. Sofremos ameaças e campanhas difamatórias por parte dos meios de comunicação estatal.

Não perseguem a grande maioria dos corruptos, a não ser que gerem competição com eles, mas são impiedosos com os trabalhadores que reclamam e lutam, o que facilmente são presos por “incitação ao ódio” e até com acusações de “terrorismo.”

QUEM PODE LEVANTAR AS BANDEIRAS DA LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO?

Nem o governo da burocracia (a nova direita) nem a oposição burguesa (a velha direita) podem levantar essas bandeiras, porque fazem parte da corrupção. Incluímos as burocracias sindicais de ambos os lados, porque são parte dos clãs e os corruptos são seus líderes políticos.

O governo, além de ter nomeado nos seus cargos os que cometeram corrupção, os manteve lá por um bom tempo e não garantiram, nem garantem a recuperação dos recursos (é até possível pensar que voltariam a roubar novamente ). A oposição da direita clássica demonstrou com Guaidó e com casos como o de Citgo ou o de Monómeros, entre outros, que também não tem escrúpulos em utilizar os recursos públicos dos venezuelanos. Muitos daqueles que são opositores políticos estão em negócios obscuros e lucrativos com o governo. A classe empresarial tira proveito das políticas antitrabalhadoras do governo, submetendo a classe trabalhadora a um roubo permanente (é roubo e corrupção tirar seus salários justos e seus benefícios para o enriquecimento de alguns poucos).

O governo com seus instrumentos, antes da ANC (2017) e agora da AN, com o aval dos demais poderes públicos, aprovou instrumentos inconstitucionais como a chamada Lei Anti-Bloqueio e as Zonas Econômicas Especiais, que protegem o sigilo, a falta de transparência e as decisões não consultadas nas transações e negócios do Estado com a capital transnacionail e nacional. Isso serve para esconder a corrupção.

Há aqueles do governo e da Assembleia Nacional que propõem reforçar as leis anti-corrupção, mas de nada servem as suas leis se eles mesmo, as violam flagrantemente (as que já existem) e pisoteiam a Constituição.

Cabe à classe trabalhadora e aos setores do povo em luta, ao Povo Soberano, erguer as bandeiras anticorrupção como vítimas de suas penúrias e consequências.

AS PROPOSTAS DA MARÉ SOCIALISTA CONTRA A CORRUPÇÃO E O DESFALQUE

– Marea sempre chamou a classe trabalhadora e o movimento popular a exercer o papel de controlar e fiscalizador anticorrupção, que está vinculado à educação e formação de valores e conscientização contra esse flagelo, que na Venezuela é parte estrutural do sistema de dominação.

– Defendemos que a luta consequente contra a corrupção deve estar ligada à necessidade de lutar por uma nova revolução, para estabelecer um governo democrático, anticapitalista, dos trabalhadores e do povo, sem burocratas, nem corruptos.

– Desta forma, propomos a palavra de ordem de uma Auditoria Pública e Cidadã, com a participação dos trabalhadores, tanto das empresas como das contas do Estado (incluídas as da PDVSA, CVG, Arco Mineiro, setor agroalimentar…) e das dívidas externa e interna, altamente suspeitas de ilegalidade e ilegitimidade. Incluso, acreditamos que os trabalhadores têm direito a isso em empresas de capital privado. Para aplicá-la, é necessário um movimento social capaz de organizá-la e impulsioná-la.

– Exigimos a investigação, destituição, julgamento, prisão e confiscação das contas e bens dos corruptos.

– Isto anda de mãos dadas com a essencial liquidação do nepotismo e a concentração de múltiplos cargos nas mesmas pessoas.

– Demandamos a desmilitarização da Administração Pública e a revisão dos negócios das empresas da FANB.

– Reclamamos que sejam investigadas todas as obras inacabadas e malsucedidas ou não executadas com as quais foram esbanjados recursos do Estado (os “elefantes vermelhos”).

– Incluímos na exigência de auditoria e investigação, com sua devida punição se comprovada a corrupção, os casos de empresas e fundos do Estado geridos pelo autodenominado “presidente interino” Juan Guaidó e sua equipe, com usurpação dos poderes públicos, e de maneira lesiva à soberania nacional, em cumplicidade ao serviço do imperialismo (governos dos Estados Unidos).

– Propomos um Fundo Autónomo e Sob Controle Social, para o depósito e gestão dos recursos que possam ser resgatados das mãos dos corruptos, para os destinar à melhoria dos salários e das condições sociais, bem como à recuperação das empresas estatais , investimento produtivo e obras públicas necessárias ao bem comum.

– Neste momento, as palavras de ordem anticorrupção, juntamente com a reivindicação dos direitos trabalhistas e do salário constitucional, devem fazer parte dos principais eixos que impulsionam o desenvolvimento da luta de classes na Venezuela e a recuperação substantiva do protagonismo do movimento trabalhador – popular.

– Dada a aproximação da conjuntura das eleições nacionais e presidenciais, as demandas anticorrupção também deverão ocupar um lugar central, no marco do grande descrédito que envolve o setor governamental e as formações burguesas opostas, que teremos que discutir como abordar.

– Para alcançar as mudanças necessárias, estamos empenhadas e empenhados em promover e unir todas as lutas, reconstruir a força orgânica e a capacidade de mobilização da classe trabalhadora e do povo pobre e continuar com o propósito de construir um partido revolucionário, anticapitalista e antiburocrático , das maiorias exploradas.

Encerramos este documento reiterando a necessidade de uma nova revolução na Venezuela, que permita superar o atual governo e o sistema econômico corrupto-capitalista vigente, por meio de um governo dos trabalhadores e do povo, sem burocracias político-militares, e com democracia e respeito pelos direitos dos povos.

“Zamuro não cuida da carne”, deixa o povo cuidar do que é seu! Dinheiro para salários, não para corrupção!

[*] Lúmpen-burguesia: setores da burguesia nas periferias dos países capitalistas com uma posição subalterna à burguesia imperialista.