Rússia: o motim militar de Prigozhin é um duro golpe ao regime de Putin

Oleg VERNIK, Presidente do Sindicato Independente da Ucrânia (Zahist Pratsi) e Liga Socialista da Ucrânia

Os rápidos eventos da rebelião militar e da “campanha de libertação de Moscou” da Wagner Private Military Company, e seu líder Yevgeny Prigozhin, de 23 a 24 de junho de 2023, foram uma surpresa apenas aos que não acompanham o desenvolvimento da situação da Rússia na frente ucraniana nos últimos meses. O motim se aproximava a cada dia no desenvolvimento de uma situação dramática para o exército de ocupação russo nas linhas de frente. É necessário considerar os fatos e eventos que antecederam as ações de Prigozhin.

Desde o início da agressão armada imperialista da Federação Russa contra a Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, o desenvolvimento da chamada “operação militar especial” não foi como o planejado. O exército russo utilizou uma “blitzkrieg” e não esperava ficar atolado em uma guerra difícil. A resistência do povo ucraniano e do exército, não previsto por Putin, atrasou seus planos. No final de março de 2022, surgiram relações extremamente difíceis entre Putin e a liderança do Estado-Maior das Forças Armadas da Federação. Putin parou de confiar totalmente nos generais de seu próprio Exército. Na história da URSS e da Federação Russa, esta é uma situação já muito antiga de confronto entre a KGB e o Exército. Putin emergiu do Comitê de Segurança do Estado Soviético (KGB), portanto, inicialmente desconfiava dos militares russos, vendo-os como uma ameaça ao seu poder. Por isso, em muitos aspectos, nomeou para o cargo de Ministro da Defesa uma pessoa próxima, sem ligações com o Exército e que vinha do Ministério de Situações de Emergência.

No final de março de 2022, o ex-cozinheiro chefe de Putin, e agora um grande empresário russo, Yevgeny Prigozhin, ainda era próximo Putin. Antes disso, Prigozhin passou muitos anos em prisões russas por roubos, fraude, envolvimento em atividades criminosas e roubo com um menor. Após sua libertação da prisão, Prigozhin abriu um negócio em São Petersburgo e se aproximou de Putin, que também é natural da “segunda capital da Rússia”. Com o tempo, Prigozhin criou seu próprio exército privado, com significativa atividade na África. Os combatentes de Prigozhin protegeram muitos líderes de países africanos, arrancaram negócios lucrativos na África de concorrentes do capital russo.
As estruturas militares do PMC «Wagner» estiveram/estão presentes na: República Centro-Africana do Mali, Líbia, Sudão, Moçambique, Guiné e vários outros países africanos. O “momento de auge” para Prigozhin e sua “companhia militar privada” foi a participação na guerra civil na Síria, ao lado do ditador pró-russo Assad. Paralelamente, Prigozhin desenvolveu seus negócios na Rússia e se tornou o principal fornecedor de alimentos ao exército russo.

No malsucedido início da invasão na Ucrânia e da insatisfação de Putin com as ações dos generais russos, Prigozhin conseguiu convencer Putin de que era necessário usar sua unidade Wagner na frente ucraniana por ser mais treinada, com combatentes com experiência militar. Putin concordou e considerou que o Wagner se tornaria uma espécie de alternativa ao exército russo na frente, sob seu controle pessoal. Desde o início de abril de 2022, as unidades de Wagner deixaram a Síria e a África e chegaram à região de Donetsk ao lado do agressor russo. Prigozhin recebeu garantias de Putin de que, antes de tudo, sua “companhia militar privada Wagner” receberia projéteis e munições militares. Em abril de 2022, Wagner tinha seus próprios tanques, veículos blindados e até aeronaves próprias. No entanto, as conquistas da linha de frente de Wagner foram bastante modestas. Após uma luta prolongada, Prigozhin conquistou a cidade de Popasnaya, na região de Donetsk, e se aproximou da cidade de Bakhmut.

A luta por uma pequena cidade na região de Donetsk, Bakhmut, durou mais de 9 meses e se tornou uma das mais sangrentas para o lado russo. Prigozhin prometeu a Putin que tomaria Bakhmut rapidamente e abriria caminho para a ocupação de toda a região de Donetsk, mas a situação tornou-se complicada. A competição entre Wagner e os militares russos pela influência sobre Putin continuaram. Em fevereiro de 2023, em meio às batalhas por Bakhmut, o Ministério da Defesa da Federação Russa parou de fornecer projéteis ao grupo Wagner e combinou esse suprimento com unidades comuns do exército russo. Prigozhin considerou isso uma violação de seus acordos com Putin e lançou um duro ataque de informações contra os líderes do Exército russo, contra o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e contra o chefe de Estado Maior, Valery Gerasimov.

No início de junho de 2023, Prigozhin conseguiu capturar quase toda Bakhmut e anunciou a entrega de Bakhmut às forças do Ministério da Defesa da Federação e sua retirada da cidade conquistada. Graças a seus fortes recursos de informação, Yevgeny Prigozhin, como herói da “libertação de Bakhmut” e crítico da liderança burocrática do Exército russo, em junho de 2023 tornou-se o político de maior autoridade na Rússia, como indicador de seu reconhecimento popular.

A crítica de Prigozhin à liderança do Exército russo se intensificou ainda mais e passou a assumir o caráter de uma crítica social ao regime de Putin. No golpe, Prigozhin cuidadosamente absteve Putin das críticas, mas era óbvio para todos que as perguntas sobre um sistema completamente burocrático e podre não deixava de ferir a cabeça e o fundador desse sistema, Putin.

Prigozhin afirmou: “De 2014 a 2022, toda Donbass foi saqueada. Donbass foi saqueada por várias pessoas: da administração presidencial, do FSB, pessoas atraídas pelos oligarcas, como Kurchenko. São essas as pessoas que roubaram dinheiro dos residentes de Donbass”. É evidente que isso se tratava de um desafio aberto. Pela primeira vez na Rússia, um oficial militar e político deste nível admitiu abertamente que todas as tarefas de Putin na invasão e guerra na Ucrânia não tinham nada a ver com a realidade. Já na noite de 23 de junho, Prigozhin acusou a “liderança militar do país” de bombardear suas formações na região de Lugansk (Ucrânia), resultando na morte de seus mercenários. Em resposta, anunciou que, com seus lutadores, iria até Moscou numa “marcha pela justiça”.

Os eventos do motim militar se desenrolaram rapidamente. Prigozhin anunciou que 25 mil combatentes de Wagner estavam participando da marcha à Moscou. Evidente que se tratava de um número muito exagerado. Na verdade, de acordo com analistas militares, cerca de 5 a 6 mil da base de combate de Wagner e cerca de 5 a 6 mil ex-prisioneiros que se uniram a Wagner durante a guerra russo-ucraniana participaram da campanha em direção a Moscou.

Na manhã de 24 de junho, o FSB abriu um processo criminal contra Prigozhin por “convocar uma rebelião armada”. Prigozhin foi ameaçado com até 20 anos de prisão. Putin se dirigiu ao povo com uma declaração de que Prigozhin é “um traidor que o esfaqueou pelas costas”. Ao mesmo tempo, as colunas de Wagner deixaram o território da Ucrânia na manhã de 24 de junho e entraram na Rússia. Os guardas de fronteira não resistiram ao movimento das colunas de Prigozhin e foram bastante leais à unidade rebelde. Literalmente algumas horas depois, durante a “marcha da justiça”, os combatentes de Wagner entraram na cidade de Rostov e ocuparam o quartel-general do “Distrito Militar do Sul” sem resistência.

Vendo que as tropas da fronteira se recusavam a resistir à campanha de Wagner, o comando russo usou helicópteros e aviões contra as colunas de Prigozhin. Wagner abateu um avião militar russo IL-22 (matando 8 pessoas) e um helicóptero de ataque KA-52 “Alligator” (matando 5 pilotos). De acordo com relatos não confirmados, vários helicópteros russos foram abatidos, deixando metade de sua unidade em Rostov. O comboio se moveu o mais rápido possível pela rodovia M-4 em direção a Moscou, tentando evitar os principais centros regionais.

Vale ressaltar que o pânico reinou o tempo todo no Kremlin. Vários funcionários do alto escalão fugiram em aviões pessoais. Putin voou a São Petersburgo. Ao mesmo tempo, pediu o apoio e envio de unidades armadas dos líderes estaduais do CSTO (bloco militar pró-russo). Todos os chefes de estado do CSTO, incluindo o presidente cazaque Tokayev, recusaram-se a enviar tropas. O presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, ofereceu-se para ser um “negociador” entre as autoridades russas e Prigozhin.

É evidente que era absolutamente irreal tomar Moscou com 5 a 6 mil homens em caças e tanques. Mas o fato da elite do Kremlin estar em pânico terrível e o sistema de defesa do país estar em completo colapso, desmascarou uma propaganda militar russa sobre o “exército do segundo mundo”. A completa desintegração e impotência de Putin, e sua elite militar, tornaram-se óbvias.

Na noite de 24 de junho, Lukashenko conseguiu chegar a um acordo com Prigozhin. Alguns pontos foram anunciados publicamente e outros permaneceram em segredo. Como resultado das negociações, os “wagneritas” retiraram suas colunas e deixaram a cidade de Rostov de volta a seus acampamentos. Foi acordado o fim do processo criminal contra Prigozhin. O próprio Prigozhin poderá viver na Bielorrússia sob as garantias de Lukashenko. Os lutadores de Wagner que participaram da rebelião não serão perseguidos, graças aos seus méritos na linha de frente. Assim, a rebelião terminou oficialmente na noite de 24 para 25 de junho.

Lukashenko e Putin.

Primeiras conclusões

É óbvio que o próprio Prigozhin é apenas uma espécie de “teste decisivo” que mostrou a realidade do regime autoritário russo de Putin. A miragem do regime foi finalmente dissipada e, como no velho conto de fadas de Hans Christian Anderson, “o rei revelou-se totalmente nu”. Para as grandes massas da Rússia, literalmente no primeiro dia do levante militar, qualquer sacralização da personalidade de Putin desapareceu. Em vez de um político imperial duro e autoconfiante, pela primeira vez, um velho miserável e morrendo de medo apareceu às amplas camadas de russos, que não controlam totalmente a situação no país. O medo do povo russo a Putin desapareceu em apenas um dia.

Muitos, incluindo analistas de esquerda, em minha opinião, prestam muita atenção às profundas motivações e inconsistências nas ações de Prigozhin. Claro, não há prioridades morais e éticas para os clãs oligárquicos concorrentes da Rússia moderna. Prigozhin nem mesmo é um político burguês típico. Sua relação com Putin e sua camarilha se baseia no fato de que ele próprio é um deles e sua luta por “um lugar ao sol” não é pintada com cores políticas ou ideológicas, mas uma divisão banal de bens e propriedades. Ou seja, sua principal motivação não é política, mas comercial. Daí a explicação de seu oportunismo e recusa em continuar o ataque a Moscou. Provavelmente Putin, através de Lukashenko, conseguiu fazer tal oferta comercial a Prigozhin que o satisfez completamente. Sua justificativa para se recusar a atacar o Kremlin porque “não quer derramar sangue russo” é risível e absurda. Organizando um motim militar, é óbvio que isso resultará numa guerra com o regime. Prigozhin, com sua retórica, elevou o nível de expectativas dos russos comuns, e será mais doloroso, mais uma vez, se decepcionar com os políticos do grande capital. Prigozhin está no campo dos “ultrapatriotas” russos como uma ala chauvinista militarista.

Para nós, é importante ressaltar outro aspecto. Mesmo nos duros conflitos comerciais das elites capitalistas da Rússia, estas são forçadas a se voltar para questões sociais difíceis e “ganhar pontos” precisamente devido às críticas ao sistema de Putin e, o mais importante, a presença de apelos às amplas massas populares por justiça social e luta contra a oligarquia de Putin. Ou seja, o grau de descontentamento na Rússia já é muito alto e pessoas como Prigozhin ainda o elevam literalmente ao nível do início de um protesto revolucionário em massa. Mesmo com base em seus interesses comerciais…

Estamos esperando o desenvolvimento desta situação e lembramos muito bem que a classe trabalhadora russa ainda não disse sua última palavra…