De imediato, é urgente deter o genocídio sionista contra Gaza e em outros territórios. Mas uma das grandes questões que assombram milhões de pessoas em todo o mundo é: como resolver o conflito de forma justa e definitiva. A força bruta dos fatos exclui a variante servil de “Israel com direitos aos palestinos”, como proposto por alguns setores da OLP que dirigem a Autoridade Palestina. Como isso não funciona, é possível a coexistência de dois Estados, como insistem a ONU, muitos governos e correntes políticas? Ou é possível alcançar uma Palestina livre e democrática, simplesmente? Ou só será verdadeiramente livre se for socialista? Em que contexto no Oriente Médio? Trataremos sobre esses debates estratégicos de interesse geral e aos revolucionários.
Por Pablo Vasco
Muito antes do conflito atual, os dirigentes e funcionários do Fatah, partido que lidera a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e a Autoridade Nacional Palestina – que governa na Cisjordânia – já haviam abandonado até mesmo a posição enganosa da ONU de “dois Estados”. Não apenas renunciaram ao direito humano de autodeterminação de seu próprio povo, como também aceitaram o Estado sionista e sua expansão sobre todo o território palestino, em diminuição.
Mahmoud Abbas é presidente da OLP e da Cisjordânia desde as eleições de 2005, a última realizada, adiando por medo da derrota. Acusado de corrupção, sua polícia colabora com as forças israelenses para perseguir os ativistas palestinos e conter a luta popular. De fato, o único apelo do Fatah a Israel é para não serem cidadãos de segunda classe…
Essa é a orientação, agora ainda mais indefensável pelo genocídio sionista, de uma burocracia política adaptada ao domínio do Estado opressor. É a mesma coisa ou pior do que os governos burgueses árabes que reconhecem e fazem pactos com Israel contra os palestinos e as massas do mundo árabe. Essa capitulação da direção de Abbas e do Fatah é claramente funcional ao Primeiro-ministro israelense de ultradireita Netanyahu, que em uma sessão da ONU no mês passado mostrou seu mapa do “novo Oriente Médio”… com Israel expandido e nenhum centímetro quadrado palestino!
O expansionismo e o outro lado dos “dois estados”
Após a Segunda Guerra Mundial, a hegemonia imperialista se modificou: os EUA substituíram a Grã-Bretanha. Para evitar que as vítimas judias do horror nazista girassem à esquerda e, acima de tudo, para estabelecer um enclave colonial aliado no estratégico Oriente Médio, os EUA incentivaram o movimento político sionista de ocupação na Palestina, então um protetorado britânico. Assim, em 1947, as Nações Unidas, com o apoio de todas as potências, incluindo a URSS stalinista, propuseram a divisão da Palestina em dois estados, com Jerusalém sob tutela internacional1. Contudo…
Após a fundação em 1948, o Estado de Israel arrasou centenas de vilarejos palestinos, assassinou milhares de pessoas, expulsou outras centenas de milhares e roubou suas terras, num total de 20% a mais da divisão. Além desse genocídio, a Nakba para os árabes, nunca aceitou o retorno dos refugiados palestinos.
Em 1967, após a Guerra dos Seis Dias contra vários países árabes, Israel ocupou Gaza e a Cisjordânia, o Sinai egípcio, o Golã sírio e toda a Jerusalém “neutra”. Por exemplo, o político sionista Meron Benvenisti declarou: “Conquistamos, e daí? Por que deveríamos nos sentir culpados por vencer?”. Por esses fatos, o Tribunal Internacional de Haia, a Assembleia Geral da ONU e seu Conselho de Segurança consideram Israel uma potência ocupante.
Desde então, a Cisjordânia tem permanecido sob ocupação militar. Israel cercou o território com uma barreira de muros, cercas e arame farpado e instalou 175 postos de controle, além de colonos sionistas em mais de 250 assentamentos que fragmentam todo o território e violam diariamente as casas da população palestina. A barreira foi condenada pela Corte de Haia. De acordo com os tratados internacionais, os assentamentos em territórios ocupados são crimes de guerra. E, em 2017, até a própria Suprema Corte israelense anulou a lei que buscava legalizá-los.
Em 1973, após a Guerra do Yom Kippur, Israel devolveu o Sinai ao Egito. Em troca, o Egito foi o primeiro país árabe a reconhecer o Estado sionista, tudo mediado pelos EUA nos Acordos de Camp David de 1978.
Em 1978, Israel invadiu o sul do Líbano, lar de muitos refugiados do êxodo palestino. Repetiu o ato em 1982 e em 2000. Depois, devolveu parte das áreas ocupadas, mantendo algumas delas até hoje2.
Em 1980, Israel anexou Jerusalém Oriental e, em 1981, quase todas as Colinas de Golã, violando as Resoluções n.º 478 e 497 da ONU, que pedem a anulação. Até o momento, Israel instalou 230.000 colonos em Jerusalém Oriental e 20.000 em Golã. Se em 1999 havia um total de 130.000 colonos judeus no território palestino ocupado, hoje são mais de 700.000.
Em 2018, Israel retrocedeu numa de suas chamadas leis básicas, com função constitucional: definiu-se como o Estado nacional do povo judeu, impôs o hebraico como único idioma oficial – antes era também o árabe –, reconheceu o direito à autodeterminação unicamente aos judeus, concedeu interesse nacional aos assentamentos sionistas em áreas palestinas e designou Jerusalém inteira como a capital, violando o status da ONU de que deveria ser compartilhada com a Palestina. Como exemplo dessa discriminação em todos os tempos e lugares: se uma criança palestina atirar uma pedra em um colono ou em um policial judeu, será julgada por um tribunal militar; se uma criança judia agredir um palestino da mesma forma, será julgada por um tribunal civil.
Em resumo, por ser um Estado teocrático, seja a terra prometida ao povo escolhido ou a pátria dos judeus; por ser fundado com base no roubo e na expulsão da população originária; por aplicar, há 75 anos, uma política de apartheid e limpeza étnica, de supremacismo sionista e racismo antipalestino; por exercer o colonialismo e o expansionismo sem limites, como mostra a evolução do mapa; por sua própria natureza, Israel não vai parar, se não for derrotado, até completar seu genocídio e varrer a Palestina da face da Terra. A política de “dois Estados” é um lamentável e mentiroso fracasso que vem se perpetuando há 75 anos.
Se acrescentarmos a isso seu papel de gendarme regional pró-EUA, fica claro que não há e não haverá coexistência pacífica entre dois vizinhos se um for o opressor e o outro o oprimido. E dizemos vizinhos porque, a essa altura, é infantil falar de “dois Estados”: Israel é uma das maiores potências militares do mundo, enquanto a Palestina está dividida em duas, ano após ano menor, empobrecida e agora em uma prisão a céu aberto chamada Gaza: bloqueada, bombardeada e impiedosamente massacrada.
A grande traição da OLP e suas consequências
Nascida em 1964, a Organização para a Libertação da Palestina, a OLP, reunia vários movimentos políticos nacionalistas e de esquerda, sendo o principal deles o Fatah, e tinha uma milícia. Sua bandeira era a luta pela destruição do Estado de Israel, o retorno dos refugiados e a criação de uma Palestina secular e democrática do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo. Assim, ganhou peso como direção reconhecida e hegemônica do movimento palestino. Por quase uma década, manteve essa política progressista, sendo apoiada por nossa corrente.
Mas, a partir de 1973, quando o Egito, que era o apoio político e material da OLP, reconheceu Israel, a liderança de Yasser Arafat se adaptou gradualmente e rebaixou seu programa, aceitando Israel e propondo “dois Estados” como saída. Portanto, não é coincidência que, em 1974, a Liga Árabe tenha reconhecido a OLP como a “única representante legítima do povo palestino” e que a ONU a tenha admitido a OLP como membro observador.
Essa mudança qualitativa na linha da OLP em relação ao Estado sionista foi acompanhada pelo aumento do controle e da repressão burocrática das lutas do povo palestino, o que causou um crescente desgaste. No final de 1987, eclodiu a Primeira Intifada (revolta, em árabe). Contra os assassinatos de palestinos pela polícia sionista, centenas de jovens em Gaza e, mais tarde, na Cisjordânia, saíram para atirar pedras contra as tropas israelense, sendo recebidos com tiros. Essa rebelião espontânea da juventude cresceu, superou o aparato do Fatah e, com altos e baixos, durou mais de cinco anos, chocando o mundo. Nesse processo de luta que, ao mesmo tempo, radicalizou nos métodos, o Hamas se fortaleceu com o declínio político da OLP, uma organização jihadista armada cuja estratégia é acabar com o Estado de Israel, a bandeira fundadora que a direção de Arafat abandonou definitivamente.
A continuação da Intifada pressionou a OLP e Israel a negociar um “acordo de paz”. Mas sempre sob a tutela do imperialismo dos EUA, assim como o Egito havia feito em Camp David, 15 anos antes. Dessa forma, em setembro de 1993, Bill Clinton, Arafat e o primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin chegaram aos Acordos de Oslo. Em essência, a OLP reconheceu o Estado sionista e o Estado sionista aceitou uma transição para um “autogoverno provisório” palestino em Gaza e na Cisjordânia. Para a satisfação de todo o imperialismo, Arafat, Rabin e o ex-primeiro-ministro israelense Shimon Peres receberam o Prêmio Nobel da Paz… Essa traição histórica contra a causa palestina pela OLP, além da subsequente violação israelense dos precários acordos de Oslo, não interrompeu a luta palestina e ampliou ainda mais a influência do Hamas.
Esse grupo jihadista Hamas surgiu no início da década de 1980 em Gaza, primeiramente como um ramo palestino da Irmandade Muçulmana do Egito. O que o sionismo, seus cúmplices políticos e os otários da mídia agora escondem é que foi Israel quem financiou o Hamas por mais de uma década para usá-lo contra a OLP. Todos esses cínicos rotulam o Hamas de terrorista, mas omitem o terrorismo do Estado de Israel, que alimentou o inimigo de ontem e de hoje, assim como os EUA financiaram o Talibã com dinheiro e armas para combater a interferência russa no Afeganistão. O general israelense Yitzhak Segev, ex-governador de Gaza, reconheceu isso em uma reportagem do New York Times de 1981: “O governo israelense me dava um orçamento e eu o levava para as mesquitas”, onde o Hamas organizava seus militantes e até mesmo combatentes. Avner Cohen, chefe de assuntos religiosos de Israel em Gaza, admitiu em uma entrevista ao The Wall Street Journal: “O Hamas, para meu pesar, é uma criação de Israel. Foi um enorme e estúpido equívoco”3.
Em 2006, o Hamas colheu a raiva popular contra a OLP e os acordos de Oslo, venceu as eleições legislativas com 44% dos votos, rompeu seu co-governo com Abbas, na Cisjordânia, e formou um governo próprio em Gaza. Israel bloqueou Gaza imediatamente. Houve uma Segunda Intifada em 2000 por causa das provocações sionistas na mesquita sagrada de Al Aqsa e uma Terceira Intifada em 2017, quando Trump reconheceu Jerusalém como a capital israelense, para onde posteriormente transferiu sua embaixada. Em todos esses anos, a ofensiva israelense continuou, especialmente contra Gaza, com várias operações militares, confrontos e centenas de mortes de palestinos, ano a ano. Mas a resistência palestina contra o ocupante também continuou.
Que projeto para a Palestina?
Enquanto a OLP manteve a luta contra o Estado de Israel na defesa da Palestina secular e democrática, foi correto apoiar essa luta e esse objetivo, do ponto de vista do socialismo revolucionário, entendendo-o em um sentido de transição para um Estado operário e socialista. Também foi correto sustentá-la por um certo tempo depois que a OLP desistiu dela, já que estava profundamente enraizada em grandes setores das massas palestinas. Mas, ao longo dos anos, esse quadro mudou substancialmente, e nossa política e programa não podem ser um dogma engessado, mas devem refletir essas mudanças.
A OLP acabou capitulando, aceitando Israel e recuando a política para “dois Estados” e “Israel com direitos aos palestinos”, mesmo que agora esteja sendo silenciada pela situação. Já o Hamas mantém sua luta contra Israel, mas estamos separados por diferenças irreconciliáveis no projeto político. Seu objetivo é estabelecer um Estado palestino que seja teocrático, nesse caso islâmico, no qual a Sharia reine, o que consideramos profundamente reacionário. Além disso, uma parte da direção do Hamas aceitaria até mesmo as fronteiras pré-1967, com a contradição irresolúvel de coexistir com Israel. Ao mesmo tempo, o Hamas mantém o controle autoritário sobre a população de Gaza e reprimiu greves por salários e protestos contra a corrupção e o clientelismo. Para construir uma direção revolucionária alternativa, o que, obviamente, não é uma tarefa fácil, haverá contestação política desses projetos.
Nesse contexto local e regional diferente, a luta consistente pela libertação nacional palestina inclui, desde o início, o vínculo com as lutas das massas árabes da região e com as tarefas anti-imperialistas, anticapitalistas e socialistas. Não há estágios separados entre a libertação nacional contra o opressor e a libertação social e de classe contra os exploradores. Por exemplo, um governo revolucionário terá de: desmantelar o Estado sionista de Israel e todo o seu aparato repressivo; recuperar e expropriar terras para garantir moradia a todos os residentes ou refugiados que retornam; recuperar e expropriar terras para garantir que todos os camponeses possam cultivar e produzir nacionalizar sob controle social todas as empresas e bancos imperialistas ou sionistas; planejar democraticamente toda a economia a serviço e sob o controle do povo trabalhador. Além disso, não há liberdade, democracia ou auto-organização popular e dos trabalhadores sob o fundamentalismo repressivo de Estados e regimes teocráticos como no Catar ou o Irã, cujos governos manipulam a questão palestina de acordo com seus interesses circunstanciais de poder, enquanto reprimem e oprimem diariamente seus próprios povos.
Uma Palestina que recupere todo o território anterior a 1948, que seja secular, não racista e democrática não será alcançada na estrutura do capitalismo, mas por uma ruptura e parte de uma revolução socialista local e regional. É aqui que pode haver igualdade genuína de direitos e coexistência pacífica a todos os seus habitantes, independentemente de origem ou crença religiosa. Essa solução básica também busca incluir todos os trabalhadores e jovens israelenses não sionistas, como aqueles que estão se mobilizando aos milhares contra Netanyahu, ontem contra sua reforma judicial e agora contra sua agressão genocida em Gaza.
Por sua vez, a questão do direito de retorno dos refugiados à Palestina, hoje espalhados em campos no Líbano, na Síria e na Jordânia, marca a necessidade essencial de coordenar e unir em uma única corrente as lutas das massas palestinas e árabes nesses e em outros países vizinhos. Esse processo envolve o confronto contra os governos capitalistas árabes, aliados a Israel, aos EUA e a outras potências imperialistas. A Palestina só pode avançar em direção a uma mudança emancipatória e revolucionária como parte do impulso à revolução socialista em todo o Oriente Médio, com a estratégia de construir uma federação livre de repúblicas socialistas na região. Como uma onda de contágio durante a primeira e a segunda Primavera Árabe confirmou, os vasos comunicantes são muitos. Mas é urgente uma direção revolucionária para garantir que essas rebeliões populares não fiquem estagnadas e recuem, mas sim que avancem em direção à verdadeira e definitiva Primavera Árabe: uma Palestina socialista e um Oriente Médio socialista.
Notas
1. Embora os judeus constituíssem 25% da população e possuíssem 7% das terras, receberam metade da Palestina.
2. Em 2006, Israel entrou em conflito com o Hezbollah, grupo jihadista armado que ganhou influência nos campos palestinos.
3. https://diariored.canalred.tv/internacional/hamas-de-aliado-de-israel-a-grupo-terrorista/