Contribuição sobre a guerra e os debates na esquerda

Escreve Alejandro Bodart

A invasão russa dividiu águas na esquerda mundial. Na LIS, apresentamos nossos pontos de vista em diversas declarações e artigos. Neste material, irei desenvolver um esboço teórico e político que a esquerda deve ter para atuar com princípios e contribuir para a construção de uma alternativa revolucionária na Ucrânia e no Leste Europeu, algo que grande parte da esquerda se considera revolucionária nem sequer coloca.

A caracterização da guerra e dos lados em disputa

Desde o início, a guerra na Ucrânia combinou dois processos ao mesmo tempo. Por um lado, a defesa justa de sua soberania, da Ucrânia, por outro, o acirramento do atrito interimperialista entre as potências da OTAN e os imperialismos emergentes da Rússia e da China. A incompreensão desse duplo caráter da guerra, seus ritmos e a perspectiva mais provável é a base da confusão que reina em uma parte importante da esquerda.

A esquerda campista, neostalinista e setores marginais do trotskismo se alinharam abertamente à Rússia imperialista de Putin. Se amparam no correto ódio das massas ao imperialismo estadunidense e a OTAN. Mesmo assim, este setor da esquerda não merece nada mais do que a rejeição de qualquer revolucionário consistente, pois qualquer que seja a caracterização da guerra, nada justifica seu alinhamento à Rússia, também capitalista, que oprime os povos e com um regime tão reacionário. Como justificativa, alguns chegam a negar o caráter capitalista da Rússia, outros propagandeiam a fábula de que é a Rússia, e não a Ucrânia, a principal vítima da guerra. Todas essas organizações são correias de transmissão das mentiras do enorme aparato de propaganda de Moscou.

Outro setor da esquerda, incluindo várias correntes do trotskismo, levanta uma política abstencionista e clama pelo derrotismo na Rússia… e na Ucrânia. Se recusam a caracterizar a Rússia como imperialista, embora tenham a contradição de caracterizar a guerra como interimperialista e agir de acordo ou aplicar uma política como verdadeiramente é. Objetivamente e além das intenções, esse setor acaba sendo funcional a Rússia de Putin e, se a guerra evoluísse a um verdadeiro confronto militar com a OTAN, não seria uma surpresa que jogassem fora seu derrotismo e se aliassem à Rússia e China.

Para dar alguma autoridade às suas posições, costumam citar Lenin, referindo-se à guerra austríaca contra a Sérvia, que marcou o início da Primeira Guerra Mundial em 28 de julho de 1914. Lenin, num escrito um ano após o início da guerra mundial1 explica por que a agressão austríaca contra a Sérvia não pode ser vista isoladamente da Primeira Guerra Mundial que estava ocorrendo e, portanto, a política mundial que os revolucionários tiveram que realizar teve que ser o derrotismo revolucionário. A diferença com a situação atual é que depois de quatro meses, a invasão russa não se transformou na Terceira Guerra Mundial e ainda não está definido que avançará nessa direção no curto prazo. Por isso, embora faça parte da exacerbação das tensões interimperialistas e da nova guerra fria em que estamos imersos, ainda não podemos defini-la como o início de um confronto militar de mundo aberto. Para evitá-lo, o imperialismo estadunidense e europeu tiveram o cuidado de intervir diretamente com seus exércitos e a Rússia ainda não avançou sobre nenhum país da OTAN. É por isso que é um erro defini-la neste momento como uma guerra interimperialista e não apoiar a resistência ucraniana.

O próprio Lenin, falando da agressão austríaca, esclarece seu ponto de vista à Sérvia: “O único elemento nacional da presente guerra é a luta da Sérvia contra a Áustria […] há muitos anos, abrangendo milhões de seres – as ‘massas populares’ – e cuja ‘continuação’ é a guerra da Sérvia contra a Áustria. Se esta guerra fosse uma guerra isolada, isto é, se não estivesse ligada à guerra europeia, aos objetivos egoístas e gananciosos da Inglaterra, Rússia, etc., todos os socialistas seriam obrigados a desejar a vitória da burguesia sérvia: esta é a única conclusão correta e absolutamente necessária que decorre do elemento nacional da presente guerra. E é precisamente isso que não faz o sofista Kautsky, que hoje se encontra a serviço da burguesia, dos clérigos e dos generais austríacos!”

Especificamente, Lenin nos explica que, se a guerra mundial não estivesse na agenda do dia, apoiaria a Sérvia sem hesitação. Hoje, quando não temos uma guerra mundial declarada, e não está claro se isso finalmente acontecerá no próximo período, é uma obrigação apoiar uma nação atacada, onde há “um movimento de libertação nacional […]”, e que “abrange milhões de seres – as massas populares”.

Não se tratade uma guerra entre dois estados capitalistas mais ou menos semelhantes. A Rússia é uma potência, para nós imperialistas, como demonstramos e documentamos em várias elaborações de nossa corrente2, e a Ucrânia é um país capitalista atrasado e semicolonial.

O objetivo da invasão russa é subjugar a Ucrânia à sua vontade e recuperá-la para sua zona de influência, eliminar sua relativa independência e retirar parte de seu território. Os trabalhadores e o povo da Ucrânia têm todo o direito de se defender e responder militarmente ao invasor. É uma resistência justa3, em defesa de seu direito à autodeterminação. Por isso é obrigação dos socialistas revolucionários apoiar este movimento de libertação nacional, colaborando com tudo o que estiver ao nosso alcance para derrotar o invasor. Nesta guerra não podemos ser neutros, abster-nos ou apelar ao derrotismo na Ucrânia. Devemos ser pela derrota da Rússia. Não pode haver ambiguidades. A derrota da Rússia seria uma vitória revolucionária que revigoraria o movimento operário russo e todas as nacionalidades oprimidas por este país, a começar pela ucraniana. É falso o que os campistas proclamam que uma possível derrota russa pela resistência ucraniana seria uma vitória para a OTAN. A OTAN, que estava completamente desacreditada e enfraquecida antes da guerra, foi enormemente fortalecida graças a Putin. As agressões e brutalidades contra o povo ucraniano por parte da Rússia permitiram que a OTAN se revitalizasse, se armassem até os dentes, acabassem com a neutralidade da Suécia e da Finlândia e se apresentassem como “salvadores” para milhões.

O verdadeiro debate com a esquerda que não apóia a resistência ucraniana é sobre a existência ou não de um imperialismo melhor que outro. Esses setores, aberta ou vergonhosamente, acabam apoiando o imperialismo russo. Somos claros: somos contra o imperialismo. Portanto, além de dar nosso apoio à resistência ucraniana a nível militar contra o imperialismo russo, denunciamos a tentativa do imperialismo estadunidense e europeu de aproveitar a guerra para avançar com suas garras no Leste Europeu e nos países da antiga URSS. É por isso que nosso apoio militar à resistência ucraniana não implica qualquer apoio político ou colaboração ao governo neoliberal de Zelensky. Apoiamos a resistência militarmente a partir de uma posição classista, politicamente independente e diferenciada da burguesia ucraniana.

Fazemos tudo isso porque a libertação nacional da Ucrânia não é a única tarefa que nós revolucionários temos que realizar neste conflito. Também se impõe uma campanha sistemática contra o imperialismo ocidental e a OTAN, contra a União Européia e os Estados Unidos, que estão usando a guerra para se reposicionar política e militarmente na região, enfraquecendo ao máximo a Rússia e aprofundando a guerra comercial com a China, que aumenta dia a dia a ameaça de que em um futuro próximo o mundo sofrerá as consequências imprevisíveis de uma guerra de alcance internacional. Não realizar esta denúncia permanente do imperialismo ocidental em todo o mundo, incluindo na Ucrânia, também seria um erro muito grande e uma capitulação, neste caso aos EUA e à UE.

Se algum dos países imperialistas da OTAN declarasse guerra à Rússia, por qualquer motivo, todo o conflito mudaria de caráter. Se isso finalmente acontecesse, a atual nova guerra fria se transformaria em uma Terceira Guerra Mundial. Lá entraríamos em um conflito armado interimperialista e teríamos que adaptar nossa política e orientação à nova situação: a luta de libertação ucraniana ficaria em segundo plano e o confronto com a guerra imperialista se tornaria o eixo organizador. Mas, por enquanto, nenhum dos “campos” imperialistas quer seguir esse caminho. Do lado do imperialismo ocidental existem diferenças. Há setores da UE que querem acabar com o conflito o mais rápido possível, mesmo que isso implique que a Ucrânia ceda territórios, pelo enorme custo econômico que lhes causou e pelo medo de que isso evolua a uma situação social explosiva, enquanto outros, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, pretendem aprofundar o cerco à Rússia para desgastá-la ao máximo e evitar que a China decida siga o mesmo caminho. Isso não significa que as tensões não tenham chegado a um ponto crítico ou que, além das intenções dos protagonistas, não possam sair do controle. Não podemos minimizar o confronto. A nova guerra fria que começou cedo ou tarde pode evoluir para uma nova conflagração global, a única saída para definir se o imperialismo ianque continua hegemônico, uma ordem mundial bipolar se consolida ou a China emerge como o novo gendarme mundial.

Há correntes que minimizam completamente o atrito interimperialista. Alguns até escrevem que não houve guerra fria ou grandes atritos entre as superpotências. Mesmo algumas dessas organizações têm uma posição correta em relação à resistência ucraniana, mas ao não enxergarem o outro componente da guerra, acabam tendo uma orientação unilateral, cedendo à OTAN.

Na LIS, em todos os países onde temos militantes, desde o primeiro dia da guerra, além de apoiar os trabalhadores ucranianos, expressamos claramente nossa rejeição à interferência da OTAN no Leste Europeu, exigindo a dissolução tanto da OTAN quanto OTSC4. Diretamente da Ucrânia, pedimos a unidade dos trabalhadores russos e ucranianos, e diretamente da Rússia e dos países em sua área de influência, promovemos a mobilização contra Putin e a guerra.

A Ucrânia e seu caminho para a independência

A Rússia falhou em seu objetivo de uma vitória rápida que lhe permitiria assumir o controle do país e impor um governo fantoche por causa da resistência massiva da população, incluindo russos étnicos e falantes. Isso forçou o exército russo a se retirar e se concentrar em tentar controlar o sul da Ucrânia e a região de Donbass no leste5. A combatividade e coragem da resistência tem a ver com um sentimento nacionalista profundamente enraizado que é muito importante conhecer para entender a sociedade ucraniana, o movimento operário, e ter uma política revolucionária o mais correta possível.

Ao longo de sua história, a Ucrânia sofreu a invasão de seu território por diferentes potências. Ao contrário de outros Estados que se estabeleceram em torno, o território ucraniano foi dividido e oprimido por outros estados. Desde o século XVII, a influência do Império Russo se consolidou na parte oriental de seu território e a parte ocidental foi sucessivamente ocupada pela Polônia e pelo Império Austríaco. Em todos esses anos, a luta pela integridade territorial e pela defesa de sua língua e herança cultural deu forma a um movimento nacionalista cada vez mais forte.

A ascensão da esquerda revolucionária no final do século XIX e início do século XX na região, que levaria ao colapso do império dos czares e ao triunfo dos bolcheviques, estava unindo nas massas ucranianas a aspirações nacionais à luta pela construção de uma sociedade socialista sem classes. Lenin e os bolcheviques foram os únicos que defenderam o direito à autodeterminação das nacionalidades oprimidas a partir de uma perspectiva internacionalista e assim se tornaram a força determinante entre os trabalhadores e as massas ucranianas. Isto é o que Lenin disse em 1914:

Formar um Estado nacional autônomo e independente permanece, por enquanto, na Rússia, apenas o privilégio da nação russa. Nós, os proletários russos, não defendemos privilégios de nenhum tipo e também não defendemos esse privilégio. Lutamos no terreno de um determinado Estado, unimos os trabalhadores de todas as nações desse Estado, não podemos garantir este ou aquele caminho de desenvolvimento nacional, vamos ao nosso objetivo de classe por todos os caminhos possíveis. Mas não podemos ir a esse objetivo sem lutar contra todos os nacionalismos e sem defender a igualdade de todas as nações. Assim, por exemplo, depende de mil fatores, desconhecidos de antemão, se a Ucrânia terá a sorte de formar um Estado independente. E, como não queremos fazer “palpites” inúteis, defendemos firmemente o que é indubitável: o direito da Ucrânia a tal Estado. Respeitamos esse direito, não apoiamos os privilégios dos russos sobre os ucranianos, educamos as massas no espírito de reconhecimento desse direito, no espírito da negação dos privilégios do Estado de qualquer nação.6

O apoio dos bolcheviques ao direito à autodeterminação das nacionalidades foi um dos pilares que permitiram o triunfo da Revolução Russa, juntamente à política contra a guerra imperialista e o apoio às lutas dos trabalhadores e camponeses pobres. Foi graças ao triunfo da Revolução Russa que o primeiro estado ucraniano independente surgiu em 1919: a República Socialista Soviética da Ucrânia, que se tornou parte da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) desde sua fundação em 1921.

No entanto, a longa peregrinação pelo seu direito de ser uma nação independente, longe de ter terminado, rapidamente retomaria forças renovadas. Os debates acalorados que ocorreram dentro dos bolcheviques sobre a política a seguir contra as diferentes nacionalidades que compunham a URSS e, em particular, em relação à Ucrânia, são de conhecimento público de todos os marxistas com formação mínima. Os militantes comunistas ucranianos, juntamente com Lenin e Trotsky, travaram uma batalha política contra Stalin, então Comissário das Nacionalidades, que tentou subjugar a independência da recém-criada República Soviética da Ucrânia. A vitória de Lenin sobre essa política lançou as bases, que mais tarde seriam transferidas à primeira Constituição Soviética, do que os revolucionários deveriam ter em relação às nacionalidades: o pleno direito à autodeterminação nacional, que incluía o direito à independência em relação a URSS, à qual cada república aderiu livremente sem qualquer coerção.

Foi assim que Lenin se dirigiu aos trabalhadores e camponeses ucranianos em 1919:

A independência da Ucrânia foi reconhecida, tanto pelo Comitê Executivo Central da RSFSR (República Socialista Federativa Soviética Russa) quanto pelo Partido Comunista dos Bolcheviques da Rússia. É, portanto, evidente e amplamente reconhecido que apenas os próprios trabalhadores e camponeses ucranianos podem e decidirão em seu Congresso dos Sovietes ucranianos se a Ucrânia se fundirá com a Rússia ou se tornará uma república separada e independente e, neste último caso, que vínculos federativos devem ser estabelecidos entre essa república e a Rússia […]

Os trabalhadores não devem esquecer que o capitalismo dividiu as nações em um pequeno número de grandes potências opressoras (imperialistas), nações livres e soberanas, e uma esmagadora maioria de nações oprimidas, dependentes e semidependentes, não soberanas. A guerra arquicriminosa e arqui-reacionária de 1914-1918 acentuou essa divisão, inflamando assim o ódio e o ressentimento. Durante séculos, a indignação e a desconfiança de nações não soberanas e dependentes em relação às nações dominantes e opressoras, a exemplo da Ucrânia em relação a nações como a Grande Rússia, vem se acumulando.

Queremos uma união voluntária de nações – uma união que exclua qualquer coerção de uma nação sobre outra – uma união baseada na mais plena confiança, em um claro reconhecimento da unidade fraterna, no consentimento absolutamente voluntário…

Entre os bolcheviques há partidários da independência completa da Ucrânia, partidários de uma união federativa mais ou menos próxima e partidários da fusão completa da Ucrânia com a Rússia. Não deve haver divergências sobre essas questões. O Congresso Ucraniano dos Sovietes irá resolvê-los.7

Alguns anos depois, quando a década de 1920 ainda não havia terminado, a contrarrevolução stalinista começou a reverter tudo isso gradualmente até transformar a URSS em uma nova prisão aos povos. Houve uma resistência feroz dos verdadeiros bolcheviques e da oposição de esquerda a essa mudança termidoriana que abrangeu todos os fundamentos e princípios do Estado operário fundado por Lenin e Trotsky. A resposta da burocracia foi uma repressão brutal. Com sucessivos expurgos, toda a velha guarda bolchevique que havia sobrevivido à revolução e à guerra civil, foi morta na década de 1930 ou confinada à morte nos campos de concentração que surgiram em toda a URSS.

A burocracia triunfante foi especialmente cruel contra os principais dirigentes e quadros ucranianos do PC que defenderam o direito à autodeterminação nos debates da nascente URSS. A militância comunista ucraniana foi dizimada na década de 1930, seus líderes assassinados e dezenas de milhares presos e enviados para morrer nos campos do GULAG8. Estima-se que, no final da década de 1930, o PC na Ucrânia soviética tenha sido reduzido a metade. O mesmo destino recaiu sobre todos aqueles que tentaram se opor à política imposta da nova Grande Rússia, desta vez com um falso disfarce socialista. A coletivização forçada de Stalin causou fome na Ucrânia entre 1932 e 1934, na qual milhões de pessoas morreram. A russificação foi imposta mais fortemente na Ucrânia do que em outras nacionalidades, a língua russa foi reimposta e as autoridades institucionais começaram a ser substituídas por russos enviados do Kremlin. Além disso, foi incentivada a implantação da população russa no leste e sul da Ucrânia. Quando, em 1939, foi anexada a parte ucraniana que havia permanecido no poder da Polônia, foi dissolvido o PC daquela região, que até então fazia parte da III Internacional, que mais tarde também foi dissolvida. A teoria do socialismo em um só país havia sido imposta, e tudo se tornou uma função das necessidades da burocracia que centralizava em Moscou. Nada disso poderia acabar com a resistência ao opressor, embora se configurasse de forma completamente diferente do final do século XIX.

O vazio deixado pelo Partido Comunista na Ucrânia, transformando-se em instrumento do Estado opressor, passaria gradualmente a ser ocupado por organizações nacionalistas de extrema-direita9 que, em oposição ao regime stalinista e ao seu falso socialismo, tomaram uma posição abertamente pró-capitalista. Nas décadas seguintes, o ódio contra o stalinismo e o que consideravam vir do marxismo russo, moldou a consciência de uma parte importante do movimento de massas e da classe trabalhadora ucraniana.

Não é possível entender por que o nacionalismo ucraniano ganhou tanto peso durante o “reinado” de Stalin, sua direita e tudo o que aconteceu após a queda da URSS, sem analisar como os acontecimentos se desenvolveram. Tampouco o movimento operário pode ser responsabilizado por sua confusão e pelo retrocesso que sofreu em sua consciência, já que isso foi causado por décadas de barbárie stalinista.

Em um mundo onde ainda existem “viúvas” do stalinismo, é necessário atualizar permanentemente o papel monstruoso desempenhado pelo maior aparato contrarrevolucionário dentro do movimento dos trabalhadores que já existiu. E também, que os burocratas que estiveram no comando até os anos 1990, hoje foram reciclados e são os oligarcas e funcionários que dirigem os Estados onde o capitalismo foi restaurado, como é o caso da Rússia e da China.

Nacionalismo ucraniano do Século 21

A cínica propaganda russa, que confundiu uma parte da esquerda, tenta fazer as pessoas acreditarem que todo o povo ucraniano é de extrema-direita e que os nazistas são uma força de massas na Ucrânia. Isto é falso.

Há nazistas, como na Rússia e na maioria dos países europeus, cuja representação eleitoral nunca ultrapassou 2%, e acabaram de sofrer a perda da maior parte de seu braço armado, o Batalhão Azov10. Mas há também uma corrente anarquista que formou seu próprio batalhão para combater os russos e outras pequenas organizações de esquerda, o Movimento Social, e nossa Liga Socialista Ucraniana. Também há vários pró-russos, stalinistas, que foram proibidos.

Embora não exista atualmente nenhum partido ou movimento nacionalista organizado com peso de massas, é importante ter em mente que, como nacionalidade oprimida há mais de um século, a reivindicação de sua identidade nacional é muito forte no movimento de massas. A guerra levou isso à sua máxima expressão e daí a combatividade de todo o povo contra o invasor.

Como bem explicou Lenin, o nacionalismo das nações opressoras, profundamente reacionário, não é o mesmo que o nacionalismo das nações oprimidas, o que é mais contraditório porque expressa um compromisso com a luta pela libertação nacional. Nós, que somos internacionalistas, devemos entender esse fenômeno, não deixar que seja capitalizado apenas pela direita e disputá-lo com as massas e sua vanguarda mais combativa, mostrando-lhes na prática que estamos e estaremos na linha de frente do combate pela libertação nacional e contra todos os tipos de opressão externa. Só assim poderemos ser ouvidos e ter autoridade para avançar todo o nosso programa, que obviamente não termina aí, mas se conjuga com as tarefas que nos levam à mudança econômica e social, a um governo dos trabalhadores que começa ao verdadeiro socialismo.

Em algumas organizações de esquerda, especialmente de países imperialistas ou de nações que oprimem outros povos, há uma total incompreensão do peso fundamental que as tarefas anti-imperialistas e democráticas têm nos países semicoloniais e oprimidos.

A defesa do direito à autodeterminação dos povos e a luta contra todo tipo de opressão nacional é parte essencial do programa da revolução socialista. Não entender isso significa abandonar a tradição do marxismo revolucionário.

Na Ucrânia, onde o povo trava uma guerra justa contra a invasão de seu território por uma potência como a Rússia, ser um revolucionário consistente implica em apoiar, com todas as nossas forças, a resistência armada contra o invasor, independentemente do caráter burguês e neoliberal do Zelensky, governo que está liderando essa resistência. Não agir assim, além de estar no lado errado da trincheira, apoiando de fato o opressor, implica em desistir de construir uma organização socialista revolucionária na Ucrânia e em todas as ex-repúblicas soviéticas.

Devemos entender que o apoio militar por uma causa justa, quem lidere, é uma obrigação, não implica em nenhum apoio político ou perda de independência e que é isso que o marxismo verdadeiramente revolucionário sempre fez.

Trotsky, que escreveu muito sobre como os revolucionários devem agir em situações como essas, referindo-se à guerra entre o Japão imperialista e a China semicolonial, em uma carta ao pintor mexicano Diego Rivera, datada de 23 de setembro de 1937, disse o seguinte:

Em minha declaração à imprensa burguesa disse que todas as organizações operárias chinesas têm o dever de participar ativamente na linha de frente da guerra contra o Japão, sem abandonar por um momento seu programa e atividade independente. ‘Mas isso é patriotismo social!, gritam os Eiffelistas. É capitular a Chiang Kai-shek! É abandonar o princípio da luta de classes!’ O bolchevismo pregou o derrotismo revolucionário durante a guerra imperialista. Agora, tanto a guerra espanhola quanto a guerra sino-japonesa são guerras imperialistas […] Essas quatro frases, tiradas de um documento de Eiffel de 10 de setembro de 1937, bastam para afirmarmos: aqui estamos lidando com verdadeiros traidores ou com totais imbecis . Mas a imbecilidade elevada a tal poder equivale à traição.

Não colocamos, e nunca colocaremos, todas as guerras no mesmo plano. Marx e Engels apoiaram a luta revolucionária dos irlandeses contra a Grã-Bretanha, a dos poloneses contra o Czar, embora em ambas as guerras os líderes fossem, em sua maioria, membros da burguesia e às vezes até da aristocracia feudal […] No caso, católicos reacionários […] Mas nós, marxistas e bolcheviques, consideramos a luta do Riff contra a dominação imperialista uma guerra progressista. Lenin dedicou centenas de páginas para demonstrar a necessidade básica de distinguir entre nações imperialistas e nações coloniais e semicoloniais, que compreendem a grande maioria da humanidade. Falar de ‘derrotismo revolucionário’ genérico, sem diferenciar países exploradores e explorados, é fazer uma caricatura miserável do bolchevismo e colocar essa caricatura a serviço do imperialismo […]

A China é um país semicolonial que o Japão está transformando, diante de nossos olhos, em um país colonial. A luta do Japão é imperialista e reacionária. A luta da China é emancipatória e progressiva. Mas, e quanto a Chiang Kai-shek? Não temos ilusões sobre Chiang Kai-shek, seu partido e toda a classe dominante chinesa, assim como Marx e Engels não tiveram com as classes dominantes da Irlanda e da Polônia. Chiang Kai-shek é o carrasco dos trabalhadores e camponeses chineses. Mas hoje, ele é forçado, contra sua vontade, a lutar contra o Japão pelo que resta da independência chinesa. Talvez amanhã ele trairá novamente. É possível. É provavel. É até inevitável. Mas hoje ele está lutando. Só covardes, totais imbecis ou canalhas, podem se recusar a participar dessa luta.

Os sectários e ultra-esquerdistas têm medo de sujar-se de lama nas trincheiras de guerras justas que muitas vezes, como é o caso da Ucrânia, têm de partilhar com direitistas mais ou menos extremistas. E é por isso que decidem não participar, deixando a defesa das causas justas nas mãos da direita e das massas à mercê. E então reclamam, e geralmente culpam as massas, que a direita, em suas diferentes matizes, é quase a única expressão política visível.

Por causa dessas confusões e seu caráter de classe pequeno-burguês, essas esquerdas acabam abandonando qualquer intenção de construir um partido revolucionário na Ucrânia, no Leste Europeu e em qualquer país com processos complexos. E não há maior entrega possível à burguesia e à burocracia do que não construir a ferramenta indispensável À revolução!!!

Nossa Liga Socialista Ucraniana, com um ano e meio, é minoritária, com poucos camaradas experientes, mas essencialmente sindicalizada, e uma maioria de jovens em processo de formação. Está exposta a múltiplas pressões e repressão permanente. Certamente cometerá muitos erros. Mas é a única organização trotskista na Ucrânia com existência real, a única que luta para oferecer uma alternativa operária e revolucionária às massas, a única que contesta a burguesia e a direita no terreno, enquanto o resto da esquerda assiste o que acontece na imprensa de Putin ou da OTAN, há milhares de quilômetros e no conforto de suas casas.

27-06-2022


1Lenin. A falência da Segunda Internacional. Maio-junho de 1915.

2Leia: Debate sobre Putin e o imperialismo russo, de Sergio García (MST); O que é o imperialismo? China e Rússia são imperialistas?, de Gunes Gumus (SEP). Ambos de 2022.

3É assim que Lenin caracterizou esse tipo de guerra. O termo já havia sido utilizado por W. Liebknecht, dirigente do Partido Social-Democrata Alemão e pai do revolucionário alemão Karl Liebknecht.

4OTSC – Organização do Tratado de Segurança Coletiva, acordo político e militar da Rússia com várias ex-repúblicas soviéticas.

5No momento da redação deste artigo, os militares russos estão prestes a atingir esses objetivos.

6Lenin. O Direito das Nações à Autodeterminação. 1 de novembro de 1914.

7Lenin. Carta aos trabalhadores e camponeses da Ucrânia sobre as vitórias sobre Denikin. 1919.

8O GULAG foi o departamento no interior da União Soviética que criou os campos de trabalho da KGB sob o regime stalinista.

9Em 1929, a Organização Nacionalista Ucraniana foi formada e dividida em 1940 entre os seguidores de Stepan Bandera e Andriy Mélnyk. Os primeiros fundaram o Exército Insurgente Ucraniano em 1942 que, com a bandeira da independência, enfrentou o exército soviético, aliou-se aos nazistas quando estes invadiram a União Soviética, depois rompeu e confrontou ambos. Organizaram linchamentos de judeus e outras atrocidades. Foram aniquilados em 1960. Atualmente, duas pequenas organizações afirmam ser seus herdeiros e há tentativas da burguesia de mostrar Stepan Bandera como um herói da luta pela independência, escondendo seus crimes e reacionarismo.

10A maioria dos membros do infame Batalhão Azov, formado por brutamontes nazistas, perdeu a vida ou foi feito prisioneiro pelos russos.