Por Sofía Martínez – Alternativa Socialista Perú
Há poucas horas faleceu Mario Vargas Llosa, uma figura que transcendeu para além da literatura para se tornar um emblema do pensamento conservador latino-americano. Esse escritor, cuja obra o consagrou como um dos maiores expoentes da narrativa em espanhol, não utilizou sua caneta apenas para explorar os recantos mais obscuros da história e da política, mas também para se posicionar como um defensor incansável de um modelo econômico e social profundamente desigual. Ao refletir sobre seu legado, é importante destrinchar as contradições de um autor que, enquanto denunciava as injustiças dos sistemas totalitários, não hesitou em abraçar o neoliberalismo, cujo impacto devastador sobre as classes populares tem sido o verdadeiro sistema totalitário do século XXI.
A traição de suas origens
Vargas Llosa nasceu em um contexto muito específico: o de uma sociedade peruana marcada pela desigualdade e exclusão. Criado em uma família de classe média, viveu de perto as lutas e os sofrimentos do povo peruano, mas logo adotou uma visão de mundo que contrariava essas raízes. Em vez de erguer sua voz em favor das massas ou dos oprimidos, optou por um caminho que o levou a abraçar as ideias da oligarquia e do imperialismo estadunidense.
Em seus primeiros romances, especialmente em A Cidade e os Cachorros (1963) e Conversa no Catedral (1969), Vargas Llosa já mostrava uma crítica feroz à corrupção e à violência das elites peruanas. No entanto, com o passar dos anos, seu discurso foi se afastando da crítica estrutural e se aproximando da defesa de uma economia de mercado globalizada — mesmo à custa das tensões sociais que esse sistema provoca. Essa mudança ideológica é, em grande parte, o reflexo da involução que, somada à sua passagem pela política peruana e às suas posições liberais, o transformou em um fervoroso defensor do neoliberalismo.
O neoliberalismo: o sistema totalitário dos tempos modernos
A grande contradição é que Vargas Llosa, um escritor aclamado por sua capacidade de refletir sobre o autoritarismo, tornou-se um defensor ferrenho do neoliberalismo — um sistema que perpetua a opressão das maiorias em favor de uma elite transnacional que acumula riqueza à custa da pobreza e marginalização de milhões de pessoas. Em seu apoio explícito às políticas neoliberais, como as que se implementaram no Peru durante a década de 1990 sob o governo de Alberto Fujimori, Vargas Llosa se posicionou ao lado daqueles que acreditam que o mercado é a solução para todos os problemas, sem considerar que é esse mesmo mercado que tem gerado uma crescente concentração de riqueza e uma profunda desigualdade.
É verdade que o Peru dos anos 80 viveu um período de crise econômica e violência, em grande parte fruto de políticas de um Estado incapaz de atender às demandas sociais. No entanto, a resposta a essa crise não deveria ser a desregulamentação selvagem, a privatização de empresas estatais e a flexibilização do trabalho que Vargas Llosa promoveu. O suposto “milagre” econômico dos anos 90 não foi mais do que a consolidação de um modelo que favoreceu grandes empresários e multinacionais, enquanto condenava a maioria dos peruanos à pobreza e à precariedade.
A dupla moral de Vargas Llosa
Uma das maiores críticas que se pode fazer a Mario Vargas Llosa é sua dupla moral, refletida em seu constante ataque ao autoritarismo, mas com indiferença frente às consequências sociais e humanas do capitalismo neoliberal. Foi um crítico firme dos regimes chamados de progressistas, como o governo de Hugo Chávez na Venezuela e também, em seu momento, da Revolução Cubana. No entanto, costumava fechar os olhos diante das práticas autoritárias que surgem dos regimes neoliberais que ele apoiava.
Por exemplo, Vargas Llosa elogiava governos de direita na América Latina, como o de Sebastián Piñera no Chile ou o de Mauricio Macri na Argentina, que, embora eleitos democraticamente, foram responsáveis por políticas de austeridade e repressão social.
O silêncio diante da desigualdade
Em seu apoio ao modelo neoliberal, Vargas Llosa parecia ignorar as profundas desigualdades que esse sistema perpetua. Segundo relatório da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), a América Latina é a região mais desigual do planeta e o Peru não escapa dessa realidade. No entanto, Vargas Llosa não dedicou uma única palavra para questionar as estruturas que criam e mantêm essa desigualdade. Em vez de advogar por uma redistribuição justa da riqueza, limitou-se a promover o livre mercado como a única via para o progresso.
O que Vargas Llosa jamais viu — ou não quis ver — é que o neoliberalismo não apenas incrementou a pobreza, como também fortaleceu os sistemas de poder que perpetuam a injustiça social. Ao defender um modelo econômico que coloca os interesses privados acima do bem-estar coletivo, o escritor se posicionou, de fato, ao lado dos inimigos do povo — aqueles que buscam privatizar o que é público e despojar as massas dos poucos recursos que ainda lhes restam.
O último suspiro do neoliberalismo
Mario Vargas Llosa, o escritor que tanto falava sobre liberdade, justiça e dignidade humana, caiu na armadilha do neoliberalismo. Durante as eleições de 2021, deu seu apoio oportuno a Keiko Fujimori, chamando a votar para a candidata da máfia. Um escritor que jamais compreendeu o mundo andino e que criticou a obra de José María Arguedas, menosprezando seu trabalho — nas palavras da historiadora María Rostworowski, uma das causas de sua derrota eleitoral foi justamente essa incompreensão do pensamento e do sentimento do povo peruano.
Quando o Peru clamava com urgência por coerência e determinação na defesa da democracia, Vargas Llosa correu apressadamente para prestar reverência ao governo, para receber a Ordem do Sol e reconhecer diante do mundo inteiro a legitimidade de Dina Boluarte sobre o sangue de nossos irmãos assassinados nas manifestações.
Para construir uma sociedade mais justa, equitativa e livre da tirania do mercado, é necessário que a sociedade peruana reconheça as contradições daqueles que, desde seu pedestal intelectual, defendem um sistema que perpetua a opressão. Que trabalhemos sobre a memória e o pensamento crítico, porque aqui, efetivamente, não separamos o autor de sua obra.