Vão se passando os dias desde que a Corte Suprema emitiu sua sentença ratificando a condenação de CFK [Cristina Elisabet Fernández de Kirchner], proscrevendo sua candidatura e abrindo caminho para sua próxima prisão. Desde então, há diferentes posições sobre por que tudo isso está acontecendo e o que devemos fazer. Há debates sobre o que propõe o peronismo, que expressa seu projeto e sua marcha de apoio político à CFK. Há inclusive diferentes visões dentro da esquerda. Compartilhamos aqui a nossa.
Por: Direção Nacional do MST na FIT-U
Motivos e atores de uma sentença que repudiamos
Falar sobre a sentença da Corte Suprema implica necessariamente situá-la dentro da intencionalidade política do establishment — do poder político e econômico mais concentrado da AEA e da AmCham — em aliança com grande parte do poder midiático, de interesses econômicos poderosos e de setores da política burguesa, como o macrismo, entre outros, que precisam limpar o horizonte de qualquer incerteza e garantir que no futuro apenas setores extremamente alinhados a seus interesses possam estar entre as opções políticas existentes.
A pressa com que a Corte tomou sua decisão fala por si só desse objetivo. Não se trata de uma sentença que busque justiça, tampouco de combate à corrupção. É uma sentença proscritiva e autoritária, que responde centralmente a interesses políticos reacionários. Por isso a rejeitamos e repudiamos, situando-a dentro de um contexto político mais amplo.
Não estamos diante de um fato isolado, mas de uma decisão política que representa mais um avanço autoritário de uma justiça viciada e aliada ao poder, parte de um regime político que, desde a posse de Milei, vem tentando suprimir uma série de direitos sociais e democráticos das maiorias. Isso se expressa por meio de protocolos antipiquetes, DNUs [Decretos de necessidade e urgência], perseguição a lutadores sociais, arrocho salarial, abandono de programas sociais, tentativa de restrição ao direito de greve, ataques a jornalistas, maior repressão, campanhas de mentiras e incitação à violência nas redes por meio de trolls, entre outras iniciativas nefastas em curso. Esses são os problemas reais e centrais que sofre a maioria da população. A isso agora se soma a sentença da Corte.
Essência, papel e responsabilidades do PJ
Essa denúncia geral que fazemos à justiça, à sua sentença proscritiva e ao poder político burguês mais concentrado não nos impede de manter uma crítica profunda ao PJ [Partido Justicialista, o nome do partido “peronista”] e ao papel da própria CFK. Pelo contrário, a sentença e tudo o que está acontecendo reafirmam a necessidade de questionar todo o arcabouço político do regime capitalista como um todo, do qual o PJ, tanto no governo como na oposição, tem sido e é parte essencial. O peronismo, hoje centrado na figura de Cristina, pode estar momentaneamente afastado dos objetivos de parte desse poder, mas sempre que governa responde a interesses burgueses importantes. De fato, nos últimos discursos antes da sentença, CFK reafirmou sua disposição de ser uma variante de recâmbio dentro do atual regime, com posições moderadas e orientadas ao centro, buscando ser confiável e aceitando colocar em debate temas da agenda do poder concentrado, como a discussão sobre um Estado “eficiente”, a “modernização trabalhista”, além de afirmar que pagaria a dívida ilegítima com o FMI. Busca dialogar, coexistir e pactuar com um poder central que, na verdade, vem por tudo — em vez de enfrentá-lo.
A honesta intenção de suas bases trabalhadoras de alcançar justiça social, independência econômica e soberania política está a anos-luz das propostas dos dirigentes de todas as alas do PJ, que não propõem nada que aponte para um projeto independente, soberano ou emancipador. Propõem, sim, medidas diferentes das atrocidades da ultradireita de Milei, mas sempre dentro da manutenção do status quo capitalista, sem tocar nos grandes interesses, sem medidas sociais de peso nem mudanças profundas e estruturais — sem as quais é impossível resolver os problemas sociais das grandes maiorias empobrecidas e precarizadas.
Ao mesmo tempo, o PJ, desde a posse de Milei, também tem sido de uma forma ou outra responsável pelo que está acontecendo. Ao não enfrentar de forma consequente o projeto libertário, nem dentro nem fora do Parlamento — e, pior ainda, com governadores sendo protagonistas de pactos com o governo nacional e facilitadores do avanço do seu projeto, com deputados e senadores votando a favor de leis decisivas — o PJ atuou desde o início com a lógica de criticar, mas, na prática, deixa fazer, falando em derrotar Milei apenas nas eleições presidenciais de 2027. Ou seja, não impulsionou por meio de sua força sindical e social nenhum plano de luta real e contundente.
No meio dessa estratégia política nociva, a classe trabalhadora, a juventude e os setores médios têm que suportar, por parte do atual governo, anos de ajuste brutal, entreguismo, repressão e avanço rumo a um regime mais autoritário — o que, no fim das contas, também se volta contra a própria CFK com essa sentença da Corte.
Por isso nosso enfrentamento total a Milei desde sua posse, e agora nosso repúdio à sentença judicial e à proscrição, é expressado a partir de uma posição crítica e independente de CFK e do PJ, representantes de um projeto político patronal defensor deste sistema capitalista decadente. Por termos essas diferenças estratégicas, nunca demos apoio político a eles, nem o daremos agora. Denunciamos integralmente esta sentença porque somos consequentes na luta pelos direitos democráticos. Em toda nossa história, dentro e fora do país, sempre defendemos o direito político de dirigentes com os quais temos profundas diferenças, quando foram proscritos, perseguidos ou presos. E o fazemos porque também defendemos o direito de suas bases e simpatizantes de se expressarem politicamente, sem que uma Justiça parcial e viciada no poder os impeça.
Por que não vamos à marcha “Argentina com Cristina”?
Desde essa posição e diante da realidade que vivemos, desenvolvem-se debates e posições divergentes sobre o que fazer agora. Como se vê, o conjunto da direção do PJ se mobiliza não para combater todo um plano e regime, mas apenas para defender politicamente a figura de CFK, promovendo uma mobilização na quarta-feira, 18, com a consigna “Argentina com Cristina”. Uma mobilização muito parcial e fechada em forma e conteúdo, totalmente dissociada das reivindicações genuínas da população e centrada exclusivamente em apoiar politicamente Cristina.
A marcha sequer será realizada com o objetivo de derrotar a proscrição ou exigir sua liberdade, mas, como disse a própria CFK, “para se colocar à disposição da Justiça” e, a partir daí, negociar melhores condições para uma eventual prisão domiciliar. Assim, não será uma mobilização progressiva, mas ordenada pela estratégia política do PJ, que busca novos acordos e pactos enquanto repensa sua estratégia eleitoral sem Cristina como candidata.
Por isso, não participaremos dessa mobilização. A realidade do país exige outros objetivos políticos e outro tipo de medidas de luta. Em primeiro lugar, justamente por estarmos em um processo mais geral de ataques a direitos sociais e democráticos, o plano de luta necessário deve partir das demandas mais sentidas da classe trabalhadora e da juventude, para que as mobilizações sejam realmente massivas e contundentes. Nesse sentido, a convocatória do dia 18 é limitada e voltada apenas aos apoiadores de CFK — algo que consideramos um erro grave.
Nossa proposta de luta é profunda e responde à totalidade dos problemas vividos pelas maiorias. Defendemos a maior unidade nas ruas, com greves gerais e ações coordenadas e progressivas — por salários dignos, aposentadorias, trabalho, pelo Hospital Garrahan e a saúde pública, pela ciência e a educação, pela defesa de nossos direitos democráticos e contra a proscrição, e pela derrota de todo o projeto de Milei e seu regime cada vez mais autoritário. Por isso, somos e seremos parte de todas as ações unitárias e genuínas que unificarem essas demandas.
Debates na esquerda
Sobre essas questões importantes, há posições comuns — como denunciar e repudiar o veredito da Corte — mas também existem diferenças dentro da própria Frente de Izquierda. Por exemplo, consideramos equivocada a postura dos companheiros do PTS, que desde o dia do veredito vêm centrando toda sua política e intervenção na necessidade de uma greve geral contra a proscrição, organizando-se essencialmente em torno dessa tarefa, sem impulsionar uma política mais abrangente que priorize as reivindicações e necessidades da classe trabalhadora e dos setores populares, articulando-as à luta contra a proscrição. De fato, participaram de uma reunião na sede do PJ, onde — embora tenham criticado que a marcha do dia 18 seja fechada e em apoio a CFK — afirmaram ter proposto “uma luta unificada e consequente contra a proscrição, com ênfase na exigência de que as centrais sindicais convoquem uma greve nacional ativa e um plano de lutas”.
Em momentos como este, é fundamental atuar sem se deixar arrastar pelas pressões dos partidos do regime, mas sim definindo uma política coerente e de fundo. Os companheiros do PTS não vêm agindo assim. Por isso, decidiram rapidamente se reunir a sós com CFK, sem nenhum debate prévio dentro da FIT-U, enquanto o principal dirigente de sua juventude promovia publicamente um chamado à unidade com a La Cámpora, ultrapassando às pressas os limites de suas próprias contradições políticas. Lembremos que recentemente dividiram uma mobilização massiva no 24 de Março, com justificativas sectárias e a alegação falsa de que não se poderia marchar junto com o peronismo. Um erro político grave, pois essa manifestação foi convocada por todos os organismos de direitos humanos e era, de fato, de todas e todos. Agora, infelizmente, repetem o erro no sentido inverso, ao reagirem de forma precipitada e unilateral, colocando o foco exclusivamente na questão da proscrição e não em propor um plano de lutas e greves ancorado nas necessidades concretas e urgentes da classe trabalhadora, dos setores populares e da juventude.
O caso do Partido Obrero é igual ou até mais incoerente. Também haviam dividido a mobilização unificada no 24 de Março com todos os organismos de direitos humanos, alegando que seria funcional ao peronismo. Mas agora anunciam sua participação numa marcha sob a única consigna “Argentina com Cristina”, o que representa um apoio político e é um erro importante de sua parte. Porque quem repudia o veredito da Corte e exige a liberdade de CFK pode fazê-lo de maneira consequente, sem necessidade de seguir ações subordinadas aos objetivos equivocados do PJ, que são claramente distintos dos da esquerda anticapitalista e socialista.
Acrescentamos ainda que os companheiros não respondem a outra preocupação real da classe trabalhadora: o descrédito generalizado e o cansaço diante dos partidos tradicionais, inclusive o PJ. Milhões de trabalhadores e jovens veem a corrupção como uma constante estrutural do Estado, presente em diversos governos — inclusive o atual. Porém, nem o PTS nem o PO priorizam essa questão nem propõem medidas reais para que as denúncias sejam investigadas a fundo. Em nosso caso, a denúncia da proscrição contra CFK e sua prisão não nos impede de continuar afirmando que a corrupção é um flagelo estrutural de todos os governos capitalistas. O povo tem direito de saber toda a verdade. Por isso, é necessária a criação de uma Comissão Investigadora Independente que vá até o fim diante das denúncias contra os governos do peronismo, do macrismo e de Milei. Infelizmente, a Frente de Izquierda até agora não impulsionou essa proposta em comum e voltamos a insistir na importância de fazê-lo.
Ganhar as ruas e fortalecer uma alternativa
Resumindo, voltamos a expressar nosso repúdio ao veredito da Corte Suprema e a todo o plano do poder econômico, midiático e da ultradireita que governa o país. Defendemos a mais ampla luta e unidade de ação nas ruas, a construção da frente única mais ampla possível, para derrotar todo esse plano de ajuste e supressão de direitos sociais e democráticos. Estamos, portanto, a favor do impulso a todas as mobilizações que expressem e articulem as reivindicações legítimas da população, combinadas com a denúncia da proscrição e a defesa das liberdades democráticas.
Ao mesmo tempo, neste momento político, respeitando as convicções de outras companheiras e companheiros, não acreditamos que a saída esteja em voltar a confiar no PJ e em seu projeto, nem mesmo frente à proscrição. Tampouco consideramos que a solução esteja em “frentes amplas pela democracia”, lideradas pelos mesmos de sempre e com programas de centro. Frente à brutalidade do projeto de Milei, além de uma luta massiva e consequente, é necessário fortalecer uma nova alternativa política, com um programa de fundo anticapitalista e socialista, aberta à participação de milhares de companheiras e companheiros.
A Frente de Izquierda tem a oportunidade e a responsabilidade de sair da sua atual condição de ser apenas uma frente eleitoral limitada, e ousar dar passos sérios e sólidos rumo a uma grande convocatória política, para organizar milhares e apresentar no país, em meio a essa grande crise, uma voz realmente alternativa para milhões. Desde o MST, como parte da Frente de Izquierda, convidamos milhares de companheiras e companheiros da esquerda política e social, toda a militância da FIT-U, e trabalhadores e jovens oriundos das bases do peronismo, a debater a fundo, democraticamente e de forma coletiva, todas essas questões nas quais está em jogo o futuro do país.




