Por Vladimir Plotnikov

A guerra russo-ucraniana em larga escala já dura mais de três anos e, durante todo esse tempo, tem sido objeto de intenso debate tanto em setores da esquerda quanto na direita.

O principal ponto de discórdia é frequentemente o sentido social dessa guerra: qual o papel que ela desempenha no cenário mundial da luta política, isto é, no contexto da luta de classes da humanidade.

Em primeiro lugar, é necessário compreender a natureza social do regime de Putin na Rússia.

A Rússia de Putin é o resultado de uma reação sociopolítica que já dura um século.

A Rússia, como Marx apropriadamente descreveu em sua obra “Revelações da história diplomática do Século XVIII”, sempre foi um Estado extremamente reacionário. Na vanguarda da sociedade russa sempre esteve um conglomerado profundamente reacionário de forças feudais-monárquicas, não apenas hostis a qualquer tipo de desenvolvimento social, por menor que fosse, mas também firmemente convencidas da necessidade de dominação ilimitada sobre os países vizinhos. “A história da Rússia é a história de uma colonização interminável”, escreveu uma das principais figuras da historiografia russa, Sergei Platonov.

E enquanto a maioria dos países da Europa Ocidental experimentou, de uma forma ou de outra, períodos de revoluções burguesas e democráticas, no Império Russo todas as tentativas de insurreição antifeudal e antimonárquica foram brutalmente reprimidas.

A revolução contra o czarismo triunfou na Rússia apenas no início do século XX, mas devido a inúmeros conflitos locais e internacionais, a classe trabalhadora e o campesinato russos quase imediatamente mudaram de uma agenda democrático-burguesa para transformações mais radicais e socialistas, na esperança de acelerar a revolução social nos países mais desenvolvidos.

No entanto, essa tarefa colossal enfrentou imediatamente grandes dificuldades: nos países ocidentais, a classe trabalhadora ou não atingiu o nível necessário para um movimento revolucionário (França, Grã-Bretanha), ou suas tentativas de estabelecer uma ordem proletária foram afogadas em sangue (Alemanha, antigo Império Austro-Húngaro).

Na Rússia, durante a terrível guerra civil e o período subsequente de acirrada luta política, desenvolveu-se e tomou o poder um aparato burocrático que Leon Trotsky chamou de “regime de absolutismo burocrático”.

Em seu livro “Sobre a revolução”, a filósofa Hannah Arendt destacou que, na Europa, após cada revolução, as contrarrevoluções sempre triunfavam. O mesmo aconteceu na Rússia, só que em um nível tecnológico muito mais avançado e em escala gigantesca.

A classe trabalhadora soviética foi decapitada: durante os expurgos da década de 1930, o Partido Bolchevique foi fisicamente destruído, os sindicatos perderam sua autonomia e se tornaram um apêndice do sistema burocrático, e uma atmosfera de total vigilância e medo prevaleceu no país. Ao mesmo tempo, o antigo chauvinismo imperial russo foi restaurado, com a chamada “Santa Rússia” (expressão literal do hino adotado em 1944) proclamando-se o núcleo do Estado, e as chamadas “repúblicas nacionais” tiveram que se conformar ao papel de “irmãos mais novos” subordinados.

A União Soviética stalinista se converteu em uma versão renovada do Império Russo, onde a degradação das relações sociais andava de mãos dadas com a restauração da ideologia da superioridade russa. A burocracia stalinista sonhava em restaurar o capitalismo, afirmando sua posição privilegiada por todos os meios possíveis, embora não pudesse fazê-lo imediatamente. Suas aspirações só começaram a se materializar no final da década de 1980.

Tudo aconteceu como Trotsky previra em “A revolução traída”: na ausência de uma insurreição antiburocrática do proletariado, a nomenclatura soviética transformou seus privilégios em propriedade dos meios de produção. Mas isso não aconteceu de forma mecânica ou linear, mas sim em um contexto de luta política contraditória: de um lado, entre diferentes facções da burocracia governante; de outro, com os movimentos de massa de diversas classes sociais e nações que aproveitaram o colapso do sistema para afirmar suas reivindicações; e, além disso, no terreno da luta internacional.

Os símbolos desse enfrentamento entre facções burocráticas foram o secretário-geral do PCUS, Mikhail Gorbachev, e o membro do Conselho Supremo da URSS, Boris Yeltsin, que se tornou o líder da oposição ao regime de Gorbachev, cujas conquistas em política social geraram descontentamento generalizado entre a população soviética.

Yeltsin buscou apoiar-se nos movimentos patrióticos das repúblicas nacionais para remover Gorbachev do poder e assegurar o controle total da República Socialista Federativa Soviética da Rússia (RSFSR).

Em dezembro de 1991, por meio dos chamados Acordos de Belavezha, a dissolução da URSS foi proclamada, Gorbachev foi destituído do poder e as repúblicas soviéticas conquistaram a independência, em plena consonância com a ideia marxista do direito das nações à autodeterminação, que ocupou um lugar importante no direito soviético até o seu fim.

Isso é algo que Trotsky não previu, nem poderia ter previsto. A destruição da economia planificada soviética foi um evento reacionário, mas essa reação, devido às circunstâncias específicas, continha elementos revolucionários.

Yeltsin precisava, por um lado, “superar” Gorbachev e, por outro, conquistar o apoio do capital global. Hoje dificilmente se lembra, mas a era Yeltsin foi a era da “amizade com a América” e “com o Ocidente como um todo”: a nova elite russa teve que convencer o establishment ocidental de que não representava uma ameaça para ela.

No entanto, desde o início da existência da “Rússia renovada”, a natureza antidemocrática e colonialista do novo poder russo tornou-se evidente. Após o início de uma restauração capitalista acelerada em 1992, Yeltsin dissolveu e bombardeou o parlamento russo independente com a ajuda dos militares: os eventos do chamado Outubro Negro em Moscou em 1993. Um ano depois, ele reprimiu sangrentamente o movimento nacional checheno que exigia autodeterminação, levando a uma guerra prolongada no Cáucaso do Norte, durante a qual foram cometidos atos horríveis de destruição e genocídio. Autoridades americanas e europeias, na melhor das hipóteses, fizeram vista grossa, se é que aprenderam alguma coisa.

A classe dominante ieltsinista era profundamente imperial. Um dos elementos centrais da nova ideologia do Kremlin era a negação não apenas da Revolução de Outubro e do bolchevismo, mas de toda a virada revolucionária de 1917: a mídia russa começou a criminalizar toda luta política radical; a glorificação de figuras simbólicas do período monárquico foi imposta, a Igreja Ortodoxa tornou-se um ator ideológico e político fundamental, e a nostalgia dos tempos imperiais e todo tipo de chauvinismo inundou as universidades e a literatura.

Aqui é importante destacar o papel que os países vizinhos — e a Ucrânia em particular — desempenham no discurso da grande burguesia russa.

A Ucrânia emergiu do estado medieval da Rus de Kiev, cujos herdeiros se consideravam os czares russos da dinastia Romanov. O título oficial dos monarcas russos começava com as palavras “Autocrata de Moscou e Kiev”, e só então as outras partes do império eram listadas. Em outras palavras, o poder sobre a Ucrânia — do qual Kiev foi e continua sendo o centro — era um dos pilares ideológicos do czarismo russo, a base de sua pretensa “antiguidade” e “eternidade”.

Por outro lado, foi precisamente na Ucrânia que se desenrolou um dos episódios mais dramáticos da guerra civil de 1917-1922, onde as forças da reação imperial sofreram suas derrotas mais contundentes, simultaneamente nas mãos de vários grupos revolucionários.

O nacionalismo ucraniano, em suas diversas formas, foi um problema constante para o imperialismo russo por quase todo o século XX. E o Estado ucraniano que surgiu em 1991, apesar de estar ligado à Rússia por milhares de laços sociais e econômicos, opôs-se inequivocamente tanto ao imperialismo quanto à cultura russa.

No entanto, a classe dominante russa não podia exibir abertamente suas ambições coloniais e imperialistas em relação aos países vizinhos enquanto se apoiava em laços políticos e econômicos com o Ocidente. Tudo mudou no final da década de 1990 e início dos anos 2000, quando, graças ao aumento sem precedentes dos preços do petróleo, a burguesia russa foi inundada com uma verdadeira cascata de dinheiro.

Ao mesmo tempo, Boris Yeltsin, enfraquecido pelo alcoolismo crônico e problemas de saúde, realizou uma típica “transferência de poder para seu sucessor” no estilo de regimes autoritários: o ex-agente de inteligência Vladimir Putin. Putin iniciou uma reconfiguração gradual do sistema político do Kremlin, eliminando pessoas que considerava inconvenientes e promovendo aqueles que lhe deviam riqueza e posição. O chamado “endurecimento do regime” começou: as liberdades políticas foram progressivamente restringidas, o terror policial se intensificou e veículos de comunicação críticos foram isolados ou atacados diretamente.

Se Yeltsin destruiu a oposição parlamentar, Putin, na década de 2000, começou a eliminar todas as formas de oposição.

Os capitalistas russos enriqueceram rapidamente. Enquanto na época de Yeltsin havia apenas um bilionário na Rússia — e ele mal ganhava mais de US$ 3 bilhões — em 2011, havia mais de 100. Embora a inflação tenha diminuído e a pobreza urbana em massa tenha diminuído em comparação com a década de 1990, a diferença entre ricos e pobres continuou a aumentar. A base da economia passou a ser a exportação de hidrocarbonetos e recursos minerais. A estrutura social começou a se assemelhar à de Angola, Nigéria ou Venezuela: de um lado, uma burguesia ultra-rica e burocratizada; do outro, uma população empobrecida e precária, empregada principalmente no setor de serviços.

Em meados dos anos 2000, o Kremlin começou a demonstrar abertamente suas intenções antidemocráticas, confrontando diretamente o Ocidente. Primeiro, a chamada “Revolução Rosa” na Geórgia, em 2003, derrubou o presidente pró-Rússia Eduard Shevardnadze e levou ao poder um governo mais liberal e pró-europeu, duramente criticado pela mídia oficial russa. Então, no outono de 2004, eclodiu um confronto na Ucrânia entre o candidato pró-Rússia Viktor Yanukovych e o mais pró-europeu Viktor Yushchenko, o que levou a protestos massivos em Kiev, conhecidos como a Revolução Laranja; Yushchenko finalmente triunfou.

Este foi o início do “giro ucraniano” na política internacional do Kremlin — e na história da Europa Oriental e do continente como um todo.

Pela primeira vez na Rússia pós-soviética, a mídia oficial foi inundada de ódio contra a Ucrânia e os ucranianos. Apresentadores de notícias e comentaristas falavam diariamente sobre o suposto caos reinante no país vizinho, os horrores que o governo de Yushchenko traria e a ameaça de etnocídio e genocídio contra a população de língua russa da Ucrânia.

É preciso enfatizar que tudo isso não tinha base na realidade. Embora a língua russa fosse — e continue sendo — muito popular na Ucrânia, em 2004 a discussão girava exclusivamente em torno da orientação política internacional dos líderes estatais, não sobre direitos linguísticos ou civis.

O objetivo do imperialismo russo era estabelecer um regime subordinado na Ucrânia — com benefícios adicionais para as grandes empresas russas — e com a perspectiva da plena integração do país a uma nova versão do império monárquico.

A mudança para uma política imperialista abertamente agressiva tornou-se irreversível em 2014. Naquele ano, o regime de Yanukovych — que havia retornado ao poder graças a eleições democráticas e ao descontentamento com o liberalismo de Yushchenko — foi derrubado por uma nova onda de protestos em massa. Assim como em 2004, os protestos começaram como uma reivindicação democrática contra a corrupção e o autoritarismo, mas logo foram explorados por nacionalistas ucranianos, e a situação terminou com a fuga do presidente e a transferência do poder para seus oponentes.

Então, o Kremlin decidiu dar um passo que transformou a si mesmo e ao mundo: a anexação da Crimeia. A partir daquele momento, iniciou-se a construção acelerada de um novo imperialismo russo. A televisão russa começou a propagar a ideia de que “russos e ucranianos são um só povo”, que “a Ucrânia não é um país de verdade” e que o Ocidente quer “usar a Ucrânia como ponta de lança contra a Rússia”. O culto a Stalin foi retomado. Czares reapareceram nos livros escolares. Estátuas de Ivan, o Terrível, e Alexandre III foram erguidas nas cidades. A Duma aprovou leis cada vez mais repressivas. O Judiciário foi subordinado ao Executivo. A polícia política (FSB) recebeu poderes praticamente ilimitados. A repressão contra pessoas LGBT e feministas tornou-se sistemática. Comunistas de esquerda foram perseguidos. Tudo isso enquanto oligarcas russos acumulavam fortunas colossais e os gastos militares disparavam ano após ano.

E assim, em fevereiro de 2022, após oito anos de tensão e propaganda militarista, o Kremlin lançou uma invasão em larga escala da Ucrânia.

Foi uma releitura clássica das aventuras imperiais mais sombrias da história. Uma grande potência capitalista, armada com armas nucleares, decide restaurar seu império esmagando um vizinho mais fraco, que considera “seu por direito”, “parte de sua história”. Justifica essa agressão com desculpas cínicas e mentiras descaradas. Tenta ocupar grandes territórios e subjugar uma nação inteira, sem se limitar a crimes de guerra ou ao extermínio de civis. Tudo isso é acompanhado por uma avalanche de propaganda sem precedentes no país agressor.

O que tudo isso tem a ver com a Irlanda?

A Ucrânia e a Rússia encontram-se hoje em uma relação muito semelhante à que existia entre a Irlanda e a Inglaterra nos séculos XVIII e XIX. Uma grande potência imperial considera uma nação vizinha mais fraca como “sua”, explora seus recursos, tenta suprimir sua língua e cultura, nega sua independência, calunia seus líderes como “traidores” e “agentes de potências estrangeiras”, enquanto usa sua população como bucha de canhão em suas guerras.

A Irlanda foi durante séculos uma colônia do Império Britânico. Sua população foi vítima de genocídio, fome e expulsões em massa. Qualquer tentativa de insurreição nacional era afogada em sangue. Por muito tempo, ideólogos britânicos alegaram que os irlandeses não constituíam uma nação distinta, que sua língua era um dialeto rural do inglês e que a ilha sempre fizera parte da “Grã-Bretanha”.

No século XIX, após a chamada Grande Fome, milhões de irlandeses foram forçados a emigrar. Muitos se tornaram proletários na Inglaterra e foram desprezados e oprimidos como uma casta inferior, apesar de falarem a mesma língua de seus opressores. Somente no final do século XIX e início do século XX a nação irlandesa conseguiu organizar um movimento operário e socialista de massas, que combinou a luta pela independência com a revolução social. Foi então que surgiu uma nova geração de revolucionários que compreenderam que, sem romper com o imperialismo britânico, nenhuma mudança social significativa seria possível.

Esta é exatamente a situação que a Ucrânia enfrenta hoje

O povo ucraniano está resistindo não apenas a uma invasão militar, mas também a uma tentativa de aniquilação cultural e nacional por parte do imperialismo russo. Esta guerra é uma guerra de libertação nacional. E, como qualquer luta nacional autêntica, tem um caráter progressista. Mas também apresenta o perigo de o movimento de libertação se tornar subordinado ao capital estrangeiro: no caso ucraniano, ao imperialismo americano e europeu.

Portanto, a tarefa dos socialistas revolucionários em todo o mundo — e especialmente na Europa Oriental — é apoiar incondicionalmente a resistência ucraniana, sem deixar de criticar o governo Zelensky e suas políticas neoliberais. Eles devem defender o direito da Ucrânia de portar armas, à autodeterminação e à integração com outros países, como bem entender, sem ser tratada como um peão nos jogos geopolíticos das grandes potências.

Apoiar a Ucrânia não significa apoiar a OTAN. Significa estar ao lado do povo oprimido contra o opressor. Ao lado dos povos colonizados, não dos impérios. Ao lado da Irlanda, não da Inglaterra. Ao lado da Ucrânia, não de Putin.