A Revolução da primavera em Mianmar

Artigo escrito por Robert Narai originalmente para a Red Flag, publicação da Socialist Alternative, Austrália, em 27 de fevereiro de 2021.

Greves e manifestações tomaram conta de Mianmar após o Tatmadaw (forças armadas de Mianmar) prendeu a Conselheira de Estado Aung San Suu Kyi e assumiu o governo em 1 de fevereiro. Iniciado por trabalhadores da saúde e estudantes, o movimento de desobediência cívil (MDC) mobilizou massas de pessoas em manifestações de rua que desafiaram a nova junta.

As greves paralisam setores do Estado, incluindo os ministérios de investimentos e transportes, a repartição de finanças e o Departamento Administrativo Geral que supervisiona uma variedade de serviços públicos e funções governamentais – 3/4 dos funcionários públicos de Mianmar estão agora em greve. Setores inteiros, como os de bancos privados, foram fechados e um número crescente de trabalhadores dos bancos estaduais estão aderindo às greves.

Estima-se que 60% dos trabalhadores do setor elétrico estadual entraram em greve. Vários departamentos de energia em Yangon, a maior cidade do país, postaram no Facebook que se recusam a seguir as ordens das forças armadas de cortar a energia durante os ataques noturnos. “Nosso dever é fornecer eletricidade, não cortá-la”, afirmou na postagem.

Trabalhadores ferroviários estaduais também entraram em greve, recusando-se a transportar soldados para serem usados como fura-greves. Durante uma semana, as redes ferroviárias de Yangon e Mandalay, no centro do país, foram fechadas. Em resposta, a tropa de choque foi enviada para as casas dos condutores de trem, mas foi forçada a recuar por uma multidão de estudantes e trabalhadores furiosos.

Nos distritos da classe trabalhadora de Yangon e Mandalay, os residentes montaram “patrulhas noturnas” para se protegerem de bandidos armados que trabalham ao lado das forças de segurança. Antes do início das patrulhas noturnas, os moradores batem com toda força em panelas e frigideiras, uma tradição familiar em Mianmar para afastar “espíritos malignos”, e então cantam o hino de protesto “Kabar Ma Kyay Bu” (“Até o fim do mundo”), cujo as letras prometem uma luta sem fim contra os militares:

Guardaremos rancor até o fim do mundo.A história se escreve com nosso sangue.Revolução!Aqueles que perderam suas vidas na luta pela democracia.Nosso país é uma terra construída por mártires.Guardaremos rancor até o fim do mundo.

O Tatmadaw governou Mianmar durante a maior parte da história moderna do país. Depois de ganhar a independência do domínio britânico em 1947, o país passou por um período de rápido desenvolvimento industrial, acompanhado pela crescente militância da classe trabalhadora, antes que o Tatmadaw, temeroso da ameaça representada por um movimento operário insurgente, tomasse o poder em 1962.

O Tatmadaw governou pelas duas décadas posteriores por meio de um regime capitalista de Estado autoritário que destruiu todos os polos independentes do movimento de trabalhadores. Mas em agosto de 1988, o regime foi abalado por manifestações e greves estudantis exigindo democracia. Aung San Suu Kyi, filha de Aung San, líder militar que dirigiu o movimento pela independência do domínio britânico, assumiu a liderança, desviando o confronto com o regime. O Tatmadaw recuperou o controle da situação, massacrando milhares de civis e queimando ainda vivos os dirigentes do protesto. Muitos dos que escaparam desse destino, incluindo Suu Kyi, foram posteriormente presos ou colocados em prisão domiciliar.

Desde a década de 1990, o Tatmadaw se estabeleceu como uma forte fração da classe capitalista de Mianmar. Por meio de dois conglomerados de propriedade militar, Myanmar Economic Corporation e Myanmar Economic Holding Ltd., o Tatmadaw usou as privatizações para obter o controle das antigas empresas estatais a preços de leilão. Esses conglomerados controlam negócios e investimentos em setores que vão desde a cerveja, tabaco e bens de consumo a minas, moinhos, turismo, desenvolvimento imobiliário e comunicações.

O Tatmadaw redigiu a constituição de 2008 para garantir que continuaria a controlar os principais meios de poder. 1/4 dos assentos em ambas as casas do parlamento são reservados para nomeados por militares, garantindo o bloqueio de qualquer emenda constitucional. O Tatmadaw também mantém o controle de ministérios poderosos, incluindo os ministérios da Defesa e do Interior e, portanto, está isento de qualquer supervisão civil. Suu Kyi, libertada da prisão domiciliar em 2010, e sua Liga Nacional pela Democracia (LND) concordaram em manter esse acordo, apesar das forças armadas permitirem formalmente o governo civil há uma década.

Desde então, o Mianmar tornou-se destino de grandes investimentos de capitalistas do Leste e Sudeste Asiático, principalmente da China, Tailândia, Cingapura e Japão em confecções, agronegócios, mineração e petróleo. O resultado foi a grilagem generalizada de terras nas áreas rurais, o que sustentou a expansão do emprego de baixa renda, informal e precário nos centros urbanos. De acordo com o Departamento do Trabalho de Mianmar, 83% da força de trabalho está no setor informal. Nos últimos anos, essa situação resultou em uma onda de greves e organização de trabalhadores na indústria têxtil, dirigida por mulheres.

No poder, o LND e seus aliados no Tatmadaw tentaram redirecionar a raiva de classe sobre os problemas econômicos alimentando o nacionalismo étnico. Os muçulmanos Rohingya no estado de Rakhine tornaram-se um alvo particular do regime de Suu Kyi, culminando em 2017 com uma campanha de remoções forçadas que incluiu estupros por militares, assassinados e queima de casas. Centenas de milhares de Rohingya foram expulsos de Mianmar para o país vizinho Bangladesh e ainda não retornaram.

Durante o governo do LND, o Tatmadaw acreditava que poderia avançar sua posição pela via eleitoral, o Partido União, Solidariedade e Desenvolvimento. Mas o PUSD provou ser um fracasso completo em termos eleitorais, completamente ofuscado nas pesquisas pelo LND, que conquistou esmagadoras maiorias parlamentares nas eleições de 2015 e 2020.

Combinado com um declínio geral na economia, intensificada pelo início do Covid-19, a decisão do Tatmadaw de assumir o poder se deve ao colapso do equilíbrio entre os governos civil e militar. Mas essas condições também aumentaram as expectativas de toda uma geração que viveu sem uma ditadura militar aberta. O resultado foi a explosão de greves e manifestações que tomam conta do país.

Em resposta ao crescente movimento, o Tatmadaw usou a repressão feroz, incluindo gás lacrimogêneo, canhões de água, cortes de telecomunicações e eletricidade, toque de recolher noturno e prisões em massa, para intimidar os manifestantes e deter os dirigentes da greve. Segundo a Associação de Assistência a Presos Políticos, mais de 700 pessoas foram presas desde 1 de fevereiro. Muitos trabalhadores em setores estrategicamente importantes, como bancos estaduais, usinas de energia, transporte e telecomunicações, são forçados a trabalhar sob a mira de uma arma.

O Tatmadaw também usou força letal. Na capital Naypyidaw, a estudante Mya Thwet Thwet Khine, 20 anos, morreu no hospital após a polícia atirar em sua cabeça. No município de Shew Pyithar, em Yangon, Ko Tin Htut Hein, 30 anos, membro de uma patrulha noturna civil, foi morto a tiros pela polícia em um transporte público. E em Mandalay, Wai Yan Tun, 16 anos, e Ko Min Min Min Ko, 37 anos, foram mortos e 30 outros ficaram feridos quando a tropa de choque atirou munição letal contra residentes locais que protegiam os trabalhadores do estaleiro.

A repressão intensa só conseguiu alimentar o movimento. Em 20 de fevereiro, foi formado um “Comitê de Greve Geral”, que reuniu partidos políticos, sindicatos de trabalhadores, estudantes, agricultores, grupos de mulheres, grupos religiosos, monges, médicos, advogados e grupos de escritores que, com a formação dos comitês de greve, querem acabar com o regime militar, libertar todos os presos políticos, abolir a constituição de 2008 e estabelecer uma união democrática federal que garanta direitos políticos a todas as minorias étnicas, incluindo os Rohingya. Em um comunicado oficial, o comitê de greve disse: “Não podemos perder a força. Se recuarmos agora, o regime militar intensificará sua repressão. É importante unir as organizações e intensificar a greve”.

Em 22 de fevereiro, mais de um milhão de pessoas aderiram à convocação de uma Greve Geral e marcharam na maior mobilização nacional desde o início da resistência ao golpe. Em Yangon, centenas de milhares de manifestantes desceram na Avenida Sule Pagoda, no cruzamento de Hledan e em Myaynigone, retomando esses pontos de reunião depois de terem sido barricados com arame farpado e cobertos pela tropa de choque no fim de semana anterior. Em Mandalay, dezenas de milhares de manifestantes fecharam o distrito comercial central, tornando impossível para a polícia e os militares reprimirem.

A criação de comitês de greve cria um espaço alternativo de poder ao Tatmadaw, onde o movimento pode se auto-organizar nacionalmente. Mas para realmente desafiar o poder econômico e político do Tatmadaw, os comitês de greve precisarão se enraizar em locais de trabalho sob a direção de trabalhadores em greve. Nos próximos dias e semanas, a capacidade da poderosa classe trabalhadora de Mianmar de impor sua vontade sobre a situação, por meio de mais greves que paralisam a economia, será crucial.